2030 não é o fim: é o ponto de viragem para o futuro que ainda queremos
A presidente Ursula von der Leyen defende que o futuro da Europa dependerá da sua capacidade de unir ambição climática, justiça social e autonomia estratégica.
Há dez anos, o mundo uniu-se em torno de uma promessa sem precedentes: garantir prosperidade para todos dentro dos limites do planeta. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), adotados em 2015, foram o primeiro contrato global que conciliou economia, sociedade e ambiente numa mesma linguagem. Pela primeira vez, os governos do mundo inteiro reconheceram que a desigualdade, o colapso climático e a perda de biodiversidade não são problemas separados — são sintomas do mesmo sistema desequilibrado.
Mas, segundo o Sustainable Development Report 2025, a cinco anos do prazo final, o balanço é amargo. Apenas 17% das metas estão no bom caminho, quase metade avança lentamente e uma em cada cinco regrediu. O progresso é desigual, as crises multiplicam-se e a confiança na cooperação internacional enfraquece. Ainda assim, nunca a ideia de uma agenda comum para o planeta foi tão necessária.
Foi esse o ponto de partida do "webinar" “What Comes After 2030? Thinking about the Future of the SDGs”, promovido pela CATÓLICA-LISBON - Center for Responsible Business and Leadership, em parceria com a SDSN Portugal. O encontro, que abriu um ciclo de três debates sobre o futuro da Agenda 2030, reuniu figuras de referência como John Thwaites (Monash University), María Cortés Puch (UN SDSN) e Maximilian Schnippering (Siemens Gamesa). E a mensagem foi clara: 2030 não deve ser o fim da agenda — deve ser o início da sua reinvenção.
John Thwaites, que esteve nas negociações originais dos ODS em Nova Iorque, começou por recordar “a emoção de um consenso global sem precedentes”, mas lançou um aviso: “Temos de lutar para manter o que há de melhor na agenda — a visão e a coerência — e estendê-la muito para além de 2030.” Para o académico australiano, o desafio do futuro não é apenas criar metas, mas corrigir as falhas de governação, de medição e de implementação.
Thwaites defendeu três frentes de transformação. A primeira, repensar o próprio quadro dos ODS: permitir que as metas evoluam, de forma dinâmica e científica, em vez de se manterem fixas por quinze anos. Inspirado no modelo do IPCC, propõe que a ONU crie um painel científico permanente para avaliar periodicamente a adequação das metas globais. A segunda, reforçar a governação global, tornando a monitorização obrigatória e comparável — “tal como as Contribuições Nacionalmente Determinadas no Acordo de Paris”. E a terceira, focar-se na implementação, reforçando o papel da educação e da ciência aplicada. “As universidades têm de liderar o caminho”, afirmou. “Não apenas pelo conhecimento, mas pela credibilidade e pela capacidade de gerar esperança informada”, realçando o papel de reduto estável que a Academia assume num mundo em grande mudança e instabilidade.
Esta visão encontra eco nas propostas apresentadas pela Monash Sustainable Development Institute e pelo Stockholm Environment Institute, que já trabalham numa estrutura pós-2030 baseada na ciência, cooperação regional e avaliação contínua. Tal como o artigo Thought Leadership for a Post-2030 Agenda defende, o próximo quadro global deve aprender com os erros de Agenda 21 (plano de ação para o desenvolvimento sustentável, adotado na Conferência do Rio de Janeiro de 1992) e do próprio processo dos ODS, substituindo listas de metas estanques por mecanismos vivos de aprendizagem e correção coletiva.
Na sua intervenção, María Cortés Puch, vice-presidente da UN SDSN, foi ainda mais direta: “Os ODS foram a resposta à pergunta ‘qual é o futuro que queremos?’ — e hoje estamos perigosamente próximos de um futuro oposto.”
Com base no Sustainable Development Report 2025, lembrou que “nenhum dos 17 objetivos está plenamente no caminho certo” e que, desde a pandemia, a maioria dos países regrediu em áreas como liberdade de imprensa, perceção de corrupção e perda de biodiversidade. Ainda assim, 193 países continuam comprometidos. “Este é o único roteiro global que temos para enfrentar as crises que nos cercam”, afirmou.
A continuidade não é suficiente. Segundo María Cortés Puch, o mundo mudou mais nos últimos cinco anos do que nas duas décadas anteriores: novas tecnologias, novos riscos, novos conflitos. A próxima fase, que muitos já chamam de ODS 2.0, deverá combinar extensão temporal com atualização substantiva. Incluirá compromissos mais ambiciosos em biodiversidade (em linha com o Acordo de Montreal-Kunming), novas abordagens à governação da inteligência artificial e reformas profundas na arquitetura financeira global.
“Três mil milhões de pessoas vivem em países que pagam mais juros da dívida do que investem em saúde e educação”, recordou também Thwaites, ecoando a Carta de Sevilha sobre Financiamento para o Desenvolvimento. A conferência de Sevilha, realizada este ano, marcou uma viragem no debate global: pela primeira vez, uma coligação de países e instituições defendeu a criação de um sistema fiscal internacional mais justo, o reforço dos bancos de desenvolvimento e mecanismos de alívio da dívida para nações vulneráveis.
O relatório “Charting Europe’s Course to a Post-2030 Framework”, citado durante o "webinar", reforça essa ideia: a descarbonização deve estar no coração da competitividade europeia, e o investimento em energia limpa, inovação industrial e habitação acessível é a base de uma nova economia social verde. A presidente Ursula von der Leyen defende que o futuro da Europa dependerá da sua capacidade de unir ambição climática, justiça social e autonomia estratégica.
Do lado empresarial, Maximilian Schnippering, líder global de sustentabilidade da Siemens Gamesa, trouxe a perspetiva prática — e o espelho de uma nova geração de empresas. Para ele, os ODS foram “um idioma comum e uma bússola moral” que deu coerência às estratégias corporativas. “Mas os negócios operam com microindicadores, e os ODS são macroindicadores”, advertiu.
Com lucidez e autocrítica, reconheceu que o entusiasmo inicial deu lugar a fadiga e dispersão, num contexto de crises sucessivas. “Muitas empresas integraram os ODS nas suas estratégias, mas sem métricas claras e obrigatórias é impossível medir impacto real.” Por isso, defende que a nova agenda deve ligar sustentabilidade e valor económico, com métricas financeiras, sociais e ambientais interligadas. “Precisamos de transformar os ODS em imperativos de mercado”, afirmou. “Só assim o sustentável será também competitivo.”
Schnippering apresentou uma visão ousada: o pós-2030 deve dar origem a um mercado global para a sustentabilidade, onde os incentivos regulatórios e fiscais recompensem empresas que comprovem impacto positivo, e penalizem as que externalizam custos sociais e ambientais. “O investimento sustentável tem de deixar de ser exceção voluntária e tornar-se norma financeira.”
As suas palavras refletem a mudança de paradigma que se começa a ver na Europa, com o European Green Deal Industrial Plan e a nova Diretiva CSRD, que obriga as empresas a reportar o seu desempenho ESG com a mesma precisão dos resultados financeiros. O futuro da competitividade europeia, como observou Mario Draghi no seu relatório de 2024, dependerá de mobilizar 800 mil milhões de euros anuais em investimento sustentável, ligando inovação, resiliência e bem-estar.
À medida que o debate avança, a perceção é unânime: o mundo não está no caminho certo, mas já não pode voltar atrás. O pós-2030 não será uma simples extensão de prazos — será a redefinição do contrato social global. Um contrato que reconhece três verdades fundamentais.
A primeira é que a pobreza e a desigualdade são o ponto de partida, não o ponto de chegada. O editorial da Nature Sustainability deste ano foi contundente: “Sem enfrentar pobreza e desigualdade, não será possível construir uma visão comum do futuro.” O novo quadro global deverá ter essas dimensões no centro, articulando-as com a relação entre a economia e a natureza. O crescimento só será legítimo se respeitar os limites planetários e redistribuir oportunidades.
A segunda é que a sustentabilidade tem de ser financiável e financeiramente atrativa. O investimento de impacto, o financiamento verde e os mecanismos de transição justa têm de sair das margens e ocupar o centro das finanças globais. Como lembra o World Economic Forum, o défice anual de financiamento dos ODS ultrapassa os 4 biliões de dólares, e metade do planeta enfrenta fardos de dívida insustentáveis. A solução exigirá paciência financeira, parcerias híbridas e instrumentos que valorizem o longo prazo — conceitos defendidos por economistas como Mariana Mazzucato e Jeffrey Sachs.
A terceira é que a confiança e a cooperação internacional estão em risco, mas podem renascer através do conhecimento. “As universidades são talvez o último espaço global de confiança”, disse Thwaites. “Quando o mundo se fragmenta, a ciência pode ser o que nos une.” Num tempo em que o multilateralismo parece fatigado, a comunidade académica e científica surge como a nova diplomacia silenciosa: conectando redes, mediando culturas, e mantendo viva a chama da verdade factual.
Para Portugal, esta transição representa uma oportunidade singular. A aliança entre Academia, setor privado e redes internacionais como a SDSN pode posicionar o país como laboratório de inovação regenerativa — um território onde sustentabilidade e competitividade se reforçam mutuamente. Com universidades de excelência, empresas tecnológicas emergentes e fundações com visão de longo prazo, Portugal pode liderar a próxima fase da economia de impacto, demonstrando que crescer e cuidar são, afinal, o mesmo verbo.
Num dos momentos finais do "webinar", Schnippering deixou uma frase que resume o espírito deste novo tempo: “A próxima década não será sobre fazer «menos mal», mas sobre fazer «mais bem» — e fazê-lo com métricas, investimento e coragem.”
É precisamente isso que distingue este momento de qualquer outro. O que está em causa não é apenas cumprir objetivos. É reaprender a cooperar num mundo cansado de desilusões, reatar a confiança entre ciência, política e cidadãos, e transformar o cansaço em visão.
Talvez, como escreveu a Nature Sustainability, “não consigamos fazer em cinco anos o que não fizemos em dez”, mas ainda podemos — como lembrou María Cortés Puch — “usar o melhor mapa que já tivemos para reencontrar o caminho.”
2030 não é o fim. É o ponto de viragem para o futuro que ainda queremos — se tivermos a lucidez de o imaginar e a coragem de o construir.
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