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António Mateus antoniomateus@hotmail.com
25 de Outubro de 2005 às 13:59

O lugar da Pátria

O Ralha era o mais traquinas do lote. Formas redondas. Sorriso malandro, tão dotado na escrita quanto preguiçoso no perseguir da bola, ancorado ao terreiro que era pelo traseiro abundante.

O menino era, no entanto, o Sol de alegria do bando de mariolas que pardalava horas sem-fim, no sobrado da casa do Júlio. Uma força da natureza, de coração enorme, que certamente transbordava do peito para aquela cara de girassol negro. Sempre impecavelmente vestido, de roupagens e cortesias.

Ensinamentos avulsos, sobre o mundo dos Europeus e aquele existir, mais antigo e largo, de quem nasceu africano. Negro ou branco.

Ralha nasceu-lhe a destempo, fruto de uma fraqueza tardia , incubada quando os anos já se somavam às arrecuas, subtraindo-lhe o que lhe restava de vida.

E, talvez por isso, a  educação do menino negro confundiu-se na pastagem dos quatro filhos do Manecas. Beirão de Monfortinho. Homem tão mínguo de sorrisos quanto generoso de alma.

Júlio conheceu-o nas docas de Bissau, quando o parôlo ali desembarcou, com meia dúzia de tarecos, arrumados em duas cestas de verga e uma maleta manhosa, em terceira ou quarta mão. E um ar perdido de quem aterra num sonho por desbravar.

O negro , vendo-o nesses descaminhos, atirou-lhe uma bóia: «Posso-lhe dar uma mão c’o carrego?». Manecas aterrou-se num repente, com os fundilhos parqueados na mala e uma mão em cada cesta, um autêntico morcego encadeado pela luz daquela suspeitosa generosidade.

Júlio leu o branco como quem vê animal, acuado em protecção das crias. E deu-lhe espaço de fuga: «Não tenha medo. Já ganhei a jorna de hoje. É cá um modo de ser nosso. Quem visita é família. E fica mal deixá-lo só. Como se não tivesse Mundo».

Manecas desespavoriu-se. Arquivou os seus introvertismos beirões e apaixonou-se, num repente, por aqueles brilhos inesperados. Não fora a troca dos xistos ingratos da Beira, pela terra generosa da Guiné, que arbitrara a sua opção migratória, entre os primos apostados em França, e o seu rumar, solitário, para África. Mas a esperança noutras pontes do existir, que na Europa se aparafusavam, cada vez mais desumanas.

Ali, num repente, no estender de mão do Júlio, reconfortou-se no acerto da escolha. Como quem confirma, no amor físico, a intuição do namoro casto e se lhe acrescenta um beijo.» O senhor sabe onde é que se pode passar a «noute» por meia-dúzia de réis?» – perguntou o Manecas ao estivador, que jamais alguma boca branca tratara por senhor.

Manecas e Júlio fizeram-se família no casamento com duas irmãs. Negras.

Namoradas nos intervalos das respectivas jornas. Pagas a peso de gado, na tradição.

Manecas fez-se fazendeiro e prà terra vermelha carregou família. Júlio incluído.  Filhos de todos os tons. Macaco e cão também. Livros de escola e mapas desse Portugal sem-fim. O tal Império de Aquém e Além-mar, onde o Júlio se descarrilava português e o branco se alastrava, africano.

Meninos de um e de outro se confundiam no uso de roupas e sapatos, no paginar dos livros e nas palmadas pelas traquinices e os mimos pelas dores.

Dados por quem estava mais a jeito. Numa promiscuidade afectiva alheia aos fundamentalismos racistas. Brancos e negros.

Quando as armas se ergueram contra Lisboa, na pele dos colonos. E de quem lhes era família, Júlio não escolheu lado. E muito menos Ralha, então moçoilo de corpo já seco pelo rodopio dos 18 anos, no esgaçar das colheitas.

Onde vergava como todos os manos. De ambos os pais. Porque, no pensar de Júlio e Manecas, planta só vinga, viçosa, se germinada em terra dura e água pingada.

Quando as armas se ergueram contra Lisboa, na pele dos colonos. E de quem lhes era família. Ralha não escolheu lado, porque sendo assim, ele também era inimigo, mesmo sem perceber porquê.

Como tantos outros que foram trucidados. Por serem aquilo que lhes ensinaram nos bancos de escola, na benção paterna e nas pontes da vida. Como as mulheres de Júlio e Manecas. Encontradas um dia, degoladas, na beira da estrada. Baixas colaterais do autismo revolucionário.

Ralha foi educado português. Assim se dizia nos livros da escola. Assim ele repetia ao lengalenguear as linhas de comboios, os rios e afluentes do tal Portugal de Aquém e Além-mar. E não era por se vestir de raça negra, que se virava do avesso esse sentir de Pátria.

Pela cor da pele e o vigor do corpo, Ralha foi incorporado numa unidade de tropas indígenas, enquanto os irmãos, filhos do pai branco, serviram noutras frentes, o mesmo cordão umbilical.

E quando a Independência chegou, por essa mesma cor, da pele, para trás ficou. Desperdício de oficina. De mecânico amnésico. Daqueles que na hora de salvar a pele, enjeitam os filhos incubados em amante alheia.

Quando a bandeira portuguesa se arreou, em Bissau, a vida também se arreou, no corpo de Ralha, à beira da estrada, quem sabe, abreviada pelo mesmo gume que lhe transformou a mãe, numa estrela. Lá longe. Naquele céu onde, finalmente, a Pátria é onde um Homem quiser.

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