Recordação de um grande poeta
Apetece-se uma pausa, no turbilhão em que vivemos.
Sou um homem com muitas memórias, e afortunado porque levei uma vida difícil, porque me envolvi nas grandes pugnas da minha época, apenas investindo na honra e na dignidade a questão do meu próprio. Claro que há por aí uns malandros que, ocasionalmente, me injuriam e caluniam. Não têm importância nenhuma, nem aquilo que bolçam possui qualquer significado.
Já sei que é assim, desde há muitos anos. Os jornais e as revistas do fascismo eram useiros e vezeiros na prática. Apenas uma vez, na Cervejaria Ribadouro, onde tertuliava com amigos que o são, até hoje, tive de pespegar uns murros num tunante, demonstradamente valente quando acompanhado de outros capangas. De resto, desligo e sigo em frente com a prosa das minhas convicções.
Tive a sorte de a minha vida ser difícil. Mas riquíssima de ensinamentos, de sonhos e de perspectivas, nem todas, seja dito!, com resultados felizes. O melhor que havia na cultura portuguesa com esses privei, muito de perto e calorosamente. Tomaram conta de mim, no sentido moral e intelectual do termo, e a todos recordo com emoção e orgulho.
Há poucos dias, a convite da direcção do "Diário de Notícias", limpei o pó das botas e fiz-me à reportagem. A única condição que coloquei, na mesa amável do obséquio, era a seguinte: não tinha condições para sair de Lisboa, por motivos familiares. Como se tratava de escrever acerca da campanha eleitoral, escolheram a CDU, que realizava o seu comício no alto do Parque Eduardo VII. O texto saiu-me bem, apesar de não batucar prosa do género vai para trinta anos. Ia um pouco temeroso, a minha mulher disse-me que quem andou de bicicleta nunca mais esquece, e dois dos meus três filhos decidiram ir comigo. Foi um dia feliz.
A certa altura de redigir a reportagem, e a propósito daquele comício e do que ele, afinal, comportava, lembrei-me de um grande poeta, Armindo Rodrigues, de quem Alexandre O'Neill, que não prodigalizava elogios, disse, um dia, a propósito de um poema daquele seu companheiro: "E as Dez Odes ao Tejo / do Dr. Armindo / que por sinal são um poema lindo." Armindo Rodrigues era um médico excepcional, tal como poeta o era, mas detentor de um temperamento terrível. Além disso, bravo como o maior dos bravos.
Certa tarde, na Bertrand, onde um grupo de amigos (com Aquilino à cabeceira) se juntava para conversar sobre o mundo e as coisas, Armindo percebeu que um indivíduo sombrio se aproximara, sorrateiro, para escutar o que se dizia. Logo ele, irado, com o vozeirão que o caracterizava, desafiou o espião para o "encher de socos." O pide desatou a fugir, ante os impropérios de Armindo Rodrigues e a risada geral de quem à cena assistira.
Sei, de cor, numerosos poemas de muitos poetas, meus predilectos. E o poemeto seguinte, do grande e esquecido Armindo Rodrigues, foi o que achei apropriado para justapor ao texto que foi publicado no "Diário de Notícias":
Pode a distância ser longa,
pode ser longa a jornada,
mas sempre alguém chegará
onde um sonho antes chegou.
Quando morreu, o "Público" publicou meia dúzia de linhas na última página. Regresso ao poeta:
Pouco é um homem e, no entanto,
nele cabe tudo o que existe
e fica ainda espaço bastante
para poder negá-lo.
Este homem de grande estatura ética, poeta maior, amigo exemplar, médico extraordinário, de trato difícil porque proprietário de um carácter incomum, este companheiro inconformado, morreu pobre, e propositadamente ignorado pelos senhores que mandavam na Imprensa. O cultivo de capelas e a exclusão de nomes ainda faz parte do breviário. E adicione a política ao rol de malandrices e as coisas começam a compor-se.
Como os meus Dilectos sabem, tento não deixar tombar no esquecimento aqueles de entre nós que, em certas ocasiões, históricas, ergueram a voz e colocaram o alento ao serviço dos perseguidos. Continuando, aliás, uma grande tradição de protesto, de combate e de cólera que faz parte do armorial mais nobre da nossa cultura.
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