Um Verão muito agradável
Um dos grandes prazeres deste Verão foi ler uma ampla colectânea de ensaios de Stephen Jay Gould. Já conhecia a maioria dos seus livros mas não muitos destes textos, sobretudo os publicados entre 1974 e 2001 na revista Natural History...
Um dos grandes prazeres deste Verão foi ler uma ampla colectânea de ensaios de Stephen Jay Gould. Já conhecia a maioria dos seus livros mas não muitos destes textos, sobretudo os publicados entre 1974 e 2001 na revista Natural History (Gould morreu em 2002).
Stephen Jay Gould foi um eminente paleontólogo e biólogo - especialista em caracóis -, conhecido do grande público pela excelência da sua faceta de divulgador da cultura científica, com particular destaque - como não podia deixar de ser pela sua formação -, para as questões da vida, da sua origem, evolução ou da selecção natural. Darwinista militante bateu-se pela causa de uma forma que muito ajudou a consolidar a perspectiva evolucionista. Ora contra o fundamentalismo religioso americano que numa leitura literal da Bíblia preconiza o creacionismo; ora no contexto das polémicas associadas às teses de Jean-Baptiste Lamarck, segundo as quais a evolução também é fruto dos comportamentos, as chamadas leis do uso e desuso. Num caso e noutro ideias fantasiosas, já que nem a Terra foi criada há 6.000 anos, nem, por seu lado, existe maneira de transmitir geneticamente o nosso comportamento para a descendência.
Nalguns destes textos Gould trata também do recorrente aproveitamento político e ideológico do conceito de selecção natural. À direita sobrevalorizando-se a lei do mais forte, à esquerda exaltando-se a harmonia da natureza. Ora a evolução demonstra que não existe nenhuma tendência geral do mais simples para o mais complexo, nem do mais fraco para o mais forte. A adaptação às condições ambientais conduz, por vezes, a privilegiar o que aparentemente nos parece ser o mais débil ou a simplificar aquilo que se apresenta como mais elaborado. Por outro lado, a natureza só é harmoniosa na aparência, já que a sobrevivência e a evolução de cada espécie implicam uma batalha permanente com outros organismos concorrenciais, para além do facto patente de que todos se comem uns aos outros.
A selecção natural é fruto de uma combinação rigorosamente aleatória entre a mutação genética e as condições ambientais, igualmente mutantes no espaço e no tempo.
Pretender tirar linearmente deste mecanismo lições para o comportamento social humano é sempre um erro, até porque para além da natureza nós tempos igualmente um importante instrumento de definição de condutas a que chamamos cultura. É, aliás, a cultura que nos permite, como pretendia Lamarck, passar hábitos e ensinamentos para os nossos filhos.
Nessa perspectiva, mais do que tentar ideologizar o evolucionismo e a selecção natural, devemos tentar aprender, para benefício da humanidade, com alguns dos processos presentes na natureza e que muito nos podem ajudar a tornar a nossa sociedade e o mundo mais civilizados. Um dos aspectos muito presentes na forma como a vida se organiza prende-se com o princípio da cooperação. Não só muitos organismos, dos mais simples aos mais complexos, estabelecem modos de cooperação e sinergia entre si, como a própria vida na sua essência é fundamentalmente cooperativa. Imagine-se que as células do nosso corpo decidiam comportar-se como os partidos políticos e passavam o tempo a digladiar-se e recusar qualquer forma de entendimento.
A democracia que se constituiu como um sistema avançado de organização social, não conseguiu contudo até hoje estabelecer-se segundo um princípio básico de cooperação, e, tantas vezes, transforma-se numa arena impraticável de intermináveis e improdutivas confrontações. Do que resultam frequentes impasses, um clima geral de crispação e o predomínio de alguns dos aspectos mais negativos da conduta humana. É isso mesmo que vamos observando por estes dias, dadas as adversas condições ambientais de uma eleição muito disputada.
É, também por isso, que no meio de tanta algazarra me dou por privilegiado ter podido ler, entre dois mergulhos num oceano assaz tépido, as palavras esclarecidas de um verdadeiro amante da natureza e da vida, para além de admirável praticante desse exercício tão raro e cativante como é o de bem escrever.
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