Michael Spence 26 de Dezembro de 2013 às 14:00

O desafio da repartição

Avaliar o passado recente e olhar em frente para o futuro próximo é um exercício natural de fim de ano. Mas quando está em causa a economia global em 2013 e 2014, também pode ser um exercício necessário.

No último ano, o risco sistémico diminuiu. A Europa uniu-se em torno da necessidade de estabilizar a Zona Euro, com o Banco Central Europeu e a Alemanha a desempenharem os papéis principais. A transição de liderança na China terminou e foi estabelecido um caminho político relativamente claro, que envolve uma maior integração dos sectores privado e público e um papel maior – aliás "decisivo" – para os mercados. As eleições na Alemanha apontaram para uma continuidade das políticas, apesar de um longo período de crescimento baixo e desemprego alto parecer inevitável.

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As economias emergentes (excluindo a China) apenas foram temporariamente desestabilizadas pela expectativa de um aperto monetário nos Estados Unidos. Apesar disso, estão a preparar-se para um mundo com taxas de juro mais altas, marcado por uma desaceleração transitória no crescimento.

Nos EUA, a taxa de crescimento anual subiu lentamente e o desemprego diminuiu ligeiramente. O descontentamento público generalizado com um Congresso polarizado e disfuncional pode ter contribuído para um acordo orçamental bipartidário e uma redução do risco político. Apesar de ser cedo para falar de uma tendência, é possível acreditar que o pragmatismo e o compromisso vão prevalecer sobre a rectidão moral dos extremos políticos. Ninguém gosta de viver com as segundas ou terceiras escolhas, mas essa é a realidade da América por agora.

Olhando para a frente, é possível prever um processo gradual de recuperação dos balanços das empresas e padrões de crescimento equilibrados numa grande variedade de economias. Mas isto não é o mesmo que uma verdadeira retoma. Na Europa, a maior convergência nos custos unitários de trabalho e as reformas que abordem a adaptabilidade estrutural continuam por fazer. Nos EUA, o desinvestimento constante no sector público é o principal factor de bloqueio à concretização plena do potencial de crescimento.

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Uma proposta recente do economista Martin Feldstein aponta na direcção certa: é necessário financiar investimento público expansivo com um estímulo orçamental de curto a médio prazo, em conjunto com um plano de consolidação orçamental plurianual. Falta saber se o novo espírito interpartidário vai tão longe; na verdade, o desafio político de criar compromissos plurianuais credíveis continua a ser assustador.

Mas apesar de o optimismo cauteloso estar instalado, os padrões de crescimento de vários países desenvolvidos e em desenvolvimento – tanto antes como depois da crise de 2008 – revelam uma mudança dramática na repartição da riqueza e nos rendimentos rumo ao quartil mais alto da distribuição. Neste caso, não se trata apenas de produzir elevados níveis de desigualdade salarial, que é possível medir; também se pode estar a contribuir para uma reduzida mobilidade social e económica e maior desigualdade de oportunidades – o que é, discutivelmente, uma ameaça ainda maior à coesão social e estabilidade política.

Nós sabemos quais são algumas das causas dessas tendências. Nos EUA, por exemplo, a tecnologia que poupa mão-de-obra está a reduzir o emprego rotineiro de colarinho branco e azul em toda a economia, e isso está a empurrar o desemprego para actividades manuais não rotineiras ou cognitivas. Isto contribuiu, sem dúvida, para uma pressão para a descida dos salários das famílias na faixa de rendimentos médios do grande sector não transaccionável da economia. No sector transaccionável, a automação e a saída de empregos no sector intermédio (em termos de valor acrescentado) para países em desenvolvimento fez com que o crescimento do emprego parasse, enquanto o valor acrescentado por pessoa e os salários médios aumentou rapidamente.

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O sistema de educação desigual da América – no qual a qualidade é correlacionada com os níveis de rendimento dos vizinhos e o treino de aptidões não está em sincronia com as necessidades em constante mudança dos patrões – é um segundo factor a impulsionar uma maior desigualdade. E tanto reflecte uma deficiência a nível de investimento público como uma lacuna a nível da comunicação: investir em capacitação profissional numa estrutura industrial em rápida evolução é como tentar alvejar um alvo em movimento. Devido à falta de informação sobre necessidades futuras, os mercados de trabalho estão desequilibrados.

As forças de mercado altamente tecnológicas e globais não estão confinadas a um único país. Os mesmos problemas estão a colocar-se em todo o lado, com as diferenças de resultados a reflectirem a variabilidade da flexibilidade do mercado e escolhas sócio-políticas.

Estas tendências adversas remontam aos anos 80. Antes disso, o padrão de crescimento do pós-guerra evidenciou uma divergência muito menor entre os níveis médios e medianos de rendimentos do que aqueles que muitas economias estão agora a experimentar. Não é expectável que estas tendências diminuam no futuro recente.

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Melhorar os resultados desfavoráveis da repartição de riqueza vai, inevitavelmente, envolver uma intervenção directa no mercado (através, por exemplo, do salário mínimo e de políticas comerciais) ou uma mudança de incentivos (confiando no subsídio de desemprego e na repartição através do sistema de impostos ou na prestação directa de serviços). Porque as oportunidades ainda estão ligadas ao crescimento, o desafio é testar e desenhar abordagens multifacetadas que atinjam, ou pelo menos melhorem, os objectivos de repartição de riqueza, causando o mínimo de danos à flexibilidade estrutural e eficiência dinâmica da economia. Aqui, o perfeito não se deve tornar inimigo do bom.

A maioria dos países tenta abordar os problemas de repartição combinando uma provisão social de serviços básicos (como educação, treino de aptidões e serviço de saúde) com um salário mínimo, tributação de rendimentos progressiva e impostos imobiliários (o que reduz os incentivos negativos associados a altas taxas marginais de impostos sobre o rendimento). Em alguns países, uma contenção abrangente do aumento dos rendimentos e salários parece ter sido importante para restaurar a competitividade e impulsionar o produto potencial.

Também há medidas que protegem, parcialmente, as indústrias transaccionáveis internas da concorrência externa, ou que alteram os termos comerciais, no caso das taxas de câmbio e da gestão da balança de transacções correntes. Os acordos internacionais limitam essas medidas, para preservar uma economia global relativamente aberta, o que traz grandes benefícios (mesmo que a repartição de benefícios e custos seja um desafio para os decisores políticos). E todas estas medidas têm consequências para a eficiência e adaptabilidade das economias.

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No fim de 2013, um dos grandes líderes políticos dos nossos tempos, e activista para a justiça económica e social, Nelson Mandela, saiu do nosso meio. A luta por padrões sustentáveis de crescimento equitativo e inclusivo vai ser uma peça importante na definição de políticas em todo o mundo em 2014 e nos anos seguintes. Temos de acreditar que os patrões e os sindicalistas se possam entender com o governo, com as escolas e com os empreendedores sociais para avançar com esta agenda. O exemplo e a generosidade espiritual de Mandela devem ser os nossos guias.

 

Michael Spence é prémio Nobel da Economia. Professor de Economia na Stern School of Business da Universidade de Nova Iorque e Senior Fellow na Hoover Institution 

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Direitos de Autor: Project Syndicate, 2013.

www.project-syndicate.org

Tradução: Bruno Simões

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