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Brahma Chellaney
02 de Março de 2015 às 11:23

Reinterpretação da constituição japonesa

A aproximação do 70º aniversário da derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial provocou muita discussão - e lamentos – sobre o ressurgimento de rixas históricas na Ásia Oriental. Mas as recentes tensões na região podem reflectir, em parte, a falta de progresso numa outra esfera, que tem sido negligenciada: a reforma constitucional japonesa. De facto, apesar da impotência que ficou tão evidente na decapitação dos dois reféns japoneses pelo Estado Islâmico, o Japão ainda não adoptou uma única alteração à "constituição de paz" imposta pelas forças americanas de ocupação em 1947.

À primeira vista, isso pode não ser totalmente surpreendente. Afinal, a constituição serviu um propósito importante: ao garantir que o Japão não seria uma ameaça militar no futuro, permitiu ao país acabar com a ocupação estrangeira e dedicar-se à reconstrução e democratização. Mas consideremos o seguinte: a Alemanha adoptou uma constituição aprovada pelos aliados em circunstâncias semelhantes, em 1949, e desde então tem feito dezenas de emendas.

Além disso, enquanto a constituição da Alemanha, ou Lei Fundamental, autorizou o uso da força militar em defesa própria ou como parte de um acordo de segurança colectiva, a constituição do Japão estipulou o abandono total e permanente da "ameaça ou uso da força como meio para solucionar disputas internacionais". O Japão é o único país do mundo que tem essas restrições - impostas não só para evitar um ressurgimento militarista, mas também para punir o Japão pelas políticas do seu governo durante a guerra - e mantê-las é irrealista.

É por isso que o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, fez da reforma constitucional uma grande prioridade. Tendo cimentado a sua autoridade nas eleições gerais de Dezembro, em que o seu Partido Liberal Democrata obteve uma vitória decisiva, Abe está decidido a alcançar o seu objetivo de construir um Japão mais forte e competitivo - um país que possa fazer frente a uma China cada vez mais agressiva.

O esforço de Abe para "normalizar" a posição estratégica do Japão começou com uma reinterpretação do artigo 9.º da constituição, segundo o qual o país passaria a ter a possibilidade de se envolver em missões de "legítima defesa colectiva". O governo do Japão aprovou a mudança no verão passado, e os Estados Unidos apoiaram a decisão. Depois da pressão do Estado Islâmico, a legislação para implementar a reinterpretação já está pronta para ser apresentada à Dieta.

No entanto, a reinterpretação tem enfrentado alguma resistência interna e externamente. Os críticos chineses, em particular, expressaram preocupações de que o militarismo japonês possa ressurgir, ainda que não mencionem que foi a expansão militar da China que levou o governo do Japão a reavaliar a sua política de defesa nacional.

Na verdade, a reinterpretação representa pouco mais do que um ajuste: as forças japonesas podem agora proteger um navio de guerra americano que esteja a defender o Japão, mas continuam proibidas de iniciar ataques ofensivos ou participar em operações militares multilaterais. Tendo em conta que a Carta das Nações Unidas reconhece a auto-defesa individual e colectiva como um "direito inerente" dos países soberanos, a mudança não deveria gerar controvérsia.

Contudo, existem obstáculos significativos que continuam a bloquear uma reforma constitucional mais ampla. As alterações exigem uma maioria de dois terços em ambas as câmaras da Dieta e uma maioria num referendo popular, o que faz com que a constituição do Japão seja uma das mais difíceis de modificar em todo o mundo. Para facilitar as suas ambições, Abe espera reduzir os requisitos a uma maioria simples em ambas as câmaras ou eliminar a necessidade de um referendo público.

Dada a resistência popular à mudança, a tarefa de Abe não será fácil. Enquanto os cidadãos da maioria das democracias consideram as suas constituições como documentos abertos - a Índia, por exemplo, alterou a sua constituição 99 vezes desde 1950 - os japoneses tratam a sua constituição como sacrossanta. Como resultado, em vez de garantir que a sua constituição reflecte os desenvolvimentos sociais, tecnológicos, económicos e até mesmo ideológicos, os japoneses defendem zelosamente as suas disposições precisas, como os fundamentalistas religiosos defendem a verdade literal das Escrituras.

Além disso, o pacifismo está profundamente enraizado na psique japonesa, mesmo entre os jovens, em grande parte devido ao legado doloroso do militarismo pré-guerra do Japão. De facto, uma pesquisa realizada no ano passado pelo World Values ??Survey, revelou que apenas 15,3% dos japoneses - em comparação com 74,2% dos chineses e 57,7% dos norte-americanos - estaria preparado para defender o seu país, a menor taxa do mundo. Apenas 9,5% dos japoneses com menos de 30 anos mostraram estar dispostos a lutar.

Dada a oposição, uma revisão do artigo 9º, em vez de uma simples reinterpretação, não parece viável, especialmente quando o partido Komeito, declaradamente pacifista, continua a fazer parte da coligação governamental. Mesmo que Abe consiga diminuir os requisitos para as alterações – o que não é fácil, dada a probabilidade de uma consulta popular revelar o fraco apoio público - provavelmente terá que deixar a mudança para o seu sucessor.

Mas há um factor que poderia reforçar consideravelmente a causa de Abe. O apoio explícito dos Estados Unidos à reforma constitucional japonesa pode não só neutralizar as críticas chinesas, como também dar confiança a muitos japoneses de que actualizar o artigo 9º não equivale a rejeitar a ordem do pós-guerra que os norte-americanos ajudaram a estabelecer no Japão.

Isto também serviria os interesses de segurança dos Estados Unidos. Um Japão mais confiante e seguro estaria em melhores condições de impedir um aumento da influência da China no Pacífico ocidental, cumprindo-se, assim, um dos objectivos centrais da política dos Estados Unidos, que é assegurar um equilíbrio estável de poder na Ásia. Nenhum outro país da região tem condições de actuar como um contrapeso credível face à China.

O Japão de hoje - uma democracia liberal que não disparou um único tiro contra outros países em quase sete décadas, e que fez grandes contribuições para o desenvolvimento global durante este período - é muito diferente do Japão de 1947. A sua constituição deve reflectir isso mesmo.

Brahma Chellaney é professor de Estudos Estratégicos no Centro de Pesquisa Política de Nova Deli

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2015.
www.project-syndicate.org

Tradução: Rita Faria

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