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E já vão três

Quando se fala do euro, é raro não vir atrelada alguma narrativa de crise ou de iminência de fim. Indiferente, o "clube" não pára de crescer. A Letónia acaba de se converter no seu 18.º membro.

03 de Janeiro de 2014 às 14:02

2 de Abril, 2013. Dia seguinte ao das mentiras. Em comunicado, o FMI confirma que a Letónia pagou a última parcela do empréstimo, quase três anos antes do previsto. No mesmo dia, em Riga, o Governo assevera: quer aderir ao euro com o virar do ano. Três meses depois, a 9 de Julho, os ministros europeus das Finanças atestam: com um défice orçamental de 1,2% do PIB, uma dívida pública de 40,7%, inflação de 1,3%, taxas de juro de longo prazo de 3,8% e - "last but not least" - uma taxa de câmbio impecavelmente aderente à do euro quando todo o contexto convidava a uma acentuada desvalorização, a Letónia cumpre os cinco critérios de convergência definidos no Tratado de Maastricht. Seja, pois, bem-vinda à moeda europeia.

A mudança deu-se nesta quarta-feira. Não obstante as sondagens sugerirem que a maioria da população desaprova o abandono do "lat", desde 1 de Janeiro de 2014 que o pequeno país do Báltico de dois milhões de habitantes é o 18.º membro de um clube que, aparentemente indiferente aos presságios de desmantelamento e de morte, continua a captar novos sócios: a Eslováquia, ainda em 2009; a Estónia, em 2011; e agora a Letónia. Se tudo correr como o previsto, em 2015 será a vez da Lituânia.

Para os três Estados do Báltico, a adesão ao euro é fundamentalmente o corolário do que os levou a entrar na União Europeia e na NATO: consolidar a independência, apenas reconquistada em 1991, face a Moscovo. "A Rússia não vai mudar. Conhecemos bem o nosso vizinho. Como no passado, no presente e seguramente no futuro, seremos confrontados com muitos imponderáveis, pelo que é muito importante mantermo-nos juntos e dentro da UE", explica Andris Vilks, ministro das Finanças, ao "Financial Times", ao lembrar a instabilidade política e social que voltou a estalar na Ucrânia. "Este é um tributo não apenas à acção política determinada que estes três países desencadearam no rescaldo da crise financeira, mas também à excepcional transição democrática e económica que iniciaram desde que reconquistaram a independência depois do Verão dramático de 1991. Esta é uma dimensão que nunca devemos perder de vista", reforça Olli Rehn, o comissário europeu dos Assuntos Económicos, também ele um político nascido num país - a Finlândia - com memória muito fresca do domínio soviético.

Já do lado de cá do Báltico, a adesão da Estónia e agora da Letónia tem sido mais encarada como prova de que, afinal, a união monetária europeia, se não "está bem e recomenda-se", está, no mínimo, menos mal do que se apregoa; e de que as receitas de ajustamento sem recurso a desvalorização cambial funcionam, desde que seguidas com zelo pelo "paciente".

Depois de ter crescido em média mais de 10% nos anos subsequentes à entrada na União Europeia em 2004 - em boa medida devido ao consumo de bens importados alimentado por crédito barato - a ressaca chegou, e com força redobrada, por conta da crise financeira internacional. Em 2008, a braços com um défice externo superior a 20% do PIB, a Letónia viu-se privada de financiamento e foi forçada a pedir um empréstimo de 7,5 mil milhões de euros à União Europeia e ao FMI. Contra a recomendação de muitos - desde logo do economista norte-americano Paul Krugman, que chegou a vaticinar que o pequeno e jovem país seria a "nova Argentina", mas também de Olivier Blanchard, economista-chefe do FMI - o Governo manteve a moeda do país atrelada ao euro, com uma margem de flutuação de apenas 1%, como decidira em Maio de 2005, e optou por restaurar o equilíbrio externo através de uma desvalorização interna, seguindo uma rigorosa receita de austeridade, levada por vezes além do que prescreviam os credores.

Entre 2009 e 2012, as medidas de consolidação orçamental valeram 17% do PIB, tendo mais de metade sido aplicada do lado da despesa e logo no primeiro ano, no exemplo mais agressivo de "front-loading". Nesse período, mais de 21 mil funcionários públicos foram despedidos (o seu universo passou de quase 78.900 para 57.500) e os seus salários médios, ainda hoje mais elevados do que no sector privado, foram cortados em cerca de 20%.

Depois de ter caído 3,3% em 2008, a economia afundou 17,7% em 2009 e mergulhou mais 0,9% em 2010, mas desde então tem crescido acima de 4%, sendo o mais veloz dos países europeus. O défice externo passou de mais de 22% para menos de 2%, tendo o saldo sido pontualmente positivo nos anos mais agudos da recessão. O défice orçamental passou de 9,8% em 2009 para menos de 2% em 2011. Na frente interna e externa, as contas estão agora equilibradas.

Em contrapartida, muitos jovens abandonaram o país, as desigualdades sociais acentuaram-se e o desemprego permanece elevado, em torno de 13%, valor que ainda duplica o dos níveis pré-crise, embora esteja já distante do "pico" de 20,5% atingido em 2010.

Os mercados recompensaram a disciplina orçamental e a manutenção dos planos de adesão à Zona Euro que significou a eliminação do risco cambial: os "juros" da dívida pública a cinco anos passaram de 12% em Março de 2009 para um mínimo histórico de 1,7% no final de 2012. Aproveitando as condições favoráveis do mercado, Riga emitiu dívida que lhe permitiu pagar a totalidade do empréstimo pedido ao FMI com quase três anos de avanço.

O Luxemburgo dos pobres?

As mudanças recentes no sistema fiscal, aliadas à proximidade geográfica e cultural à Rússia, continuam, porém, a gerar o receio de o país se converter num território propício à evasão e fraude fiscais, capaz de atrair holdings financeiras, como o faz por excelência o Luxemburgo, ou até dinheiro oriundo de negócios ilícitos, como o que esteve na base do crescimento - e posterior explosão - de parte do sistema bancário cipriota.

A Letónia tem uma das taxas de imposto sobre os lucros das empresas (o equivalente ao IRC) mais baixas da Europa - 15% - e, desde o início de 2013, as holdings beneficiam de um enquadramento fiscal mais generoso, que isenta os dividendos pagos por residentes a não-residentes e vice-versa. Além disso, a partir deste ano as holdings deixarão de ser tributadas sobre os juros e royalties pagos a empresas estrangeiras. Isso fará com que o país se torne mais atraente para os investidores estrangeiros que queiram aí instalar as suas holdings.

Markus Meinzer, analista no "Tax Justice Network", uma organização internacional que se bate pela transparência dos regimes fiscais à escala global, considera que a Letónia tem tudo para ser o "Luxemburgo dos pobres". Em declarações ao "Der Spiegel", Meinzer enumera os riscos. A Letónia, diz, encaixa no paraíso fiscal cada vez mais comum: criou regras para sair das "listas negras", para logo simplesmente as ignorar, enquanto dá guarida a dinheiro de origem duvidosa. A circunstância de ser um pequeno e jovem Estado, onde o russo é a segunda língua mais falada, torna ainda maior o risco de se transformar num "Estado capturado", cujas leis são ditadas pelo sector financeiro, com escasso ou nenhum controlo democrático, acrescenta. Há outro fenómeno paralelo a contribuir para o receio de que estejam a ser fermentadas novas "bolhas". Em 2010, o Parlamento letão aprovou uma lei algo semelhante ao "passaporte dourado" de Paulo Portas, mas muito mais vantajosa: estrangeiros que adquirirem imóveis de valor superior a 140 mil euros obtêm, em troca, vistos de permanência de cinco anos válidos para a Letónia e para todo o território da UE.

Valdis Dombrovskis rejeita que o país possa ser comparado a Chipre, frisando que a banca movimenta o equivalente a 128% do PIB letão, três vezes menos do que a média na UE e sete vezes menos do que Chipre antes do colapso. Mas também ele encerra uma incógnita: primeiro-ministro desde Março de 2009, Dombrovskis está demissionário - e sem sucessão à vista - desde o final de Novembro, quando assumiu as "responsabilidades políticas" pela tragédia do desabamento da cobertura de um supermercado em Riga que provocou a morte de 54 pessoas.

O pequeno país do Báltico de dois milhões de habitantes é o 18.º membro de um clube que, indiferente aos presságios de  desmantelamento e  de morte, continua a captar novos sócios.

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