O abate de veículos envelhecidos, criar e manter apoios eficazes para a mobilidade elétrica e reforçar a rede de carregamento são algumas das prioridades que Helder Pedro, secretário-geral da ACAP – Associação Automóvel de Portugal, identifica para a transição energética da mobilidade. E a aposta na inovação tecnológica é essencial que a indústria se mantenha relevante.
O setor automóvel está em grande mudança. Como vê e caracteriza as alterações dos últimos tempos?
O setor automóvel atravessa uma transformação estrutural, impulsionada pela aceleração da transição energética, pela legislação e metas europeias. Esta dinâmica tem reflexo nos dados de mercado: entre janeiro e outubro de 2025, foram matriculados 219.598 veículos novos, um aumento de 6,8% face ao mesmo período de 2024. Em outubro, o mercado registou um crescimento de 6,6%, com 19.884 veículos matriculados. Destaca-se, em particular, o desempenho dos veículos eléctricos (BEV), que representaram 22% das novas matrículas de ligeiros de passageiros. Apesar desta evolução positiva, subsiste um problema estrutural: o envelhecimento do parque automóvel nacional, que continua a comprometer os objetivos de descarbonização. Atualmente existem 1,6 milhões de veículos com mais de 20 anos em circulação. Perante este cenário, a ACAP defende metas realistas e adaptadas à realidade económica nacional. Entre as prioridades estão: consolidar a mobilidade elétrica através de apoios eficazes; criar um plano robusto de incentivo ao abate de veículos em fim de vida; reformular profundamente a fiscalidade automóvel, orientando-a para critérios ambientais; e reforçar a rede de carregamento, assegurando uma cobertura territorial equitativa.
O País tem como meta a descarbonização do parque automóvel. Para quando pensa ser isso possível? Quais os principais desafios?
A descarbonização integral do parque automóvel é essencial para que Portugal alcance a neutralidade carbónica até 2050, conforme estabelecido nas metas nacionais e europeias. No entanto, face à atual realidade do parque circulante dificilmente será possível concretizar essa meta antes de 2040–2050. Para acelerar o processo, é necessário adotar uma estratégia integrada, que inclua: a renovação acelerada do parque, através de incentivos ao abate e apoio à aquisição de veículos mais eficientes; a revisão da fiscalidade automóvel, promovendo uma transição gradual do ISV para o IUC com base em critérios ambientais; o reforço da rede de carregamento, especialmente nas zonas de menor densidade populacional e o apoio à eletrificação das frotas profissionais e logísticas, em articulação com o tecido empresarial. Entre os principais desafios, destacam-se a pressão económica sobre os consumidores, a ausência de políticas públicas estáveis e previsíveis, e a necessidade de reforçar a componente industrial nacional, para garantir competitividade.
Como pode a descarbonização ser uma oportunidade para o setor?
Ao promover a inovação industrial, o investimento em tecnologia e o desenvolvimento de novas competências. A transição para veículos electrificados e soluções de mobilidade sustentável cria novas áreas de negócio, como a produção de componentes avançados, o fabrico e a reciclagem de baterias, os serviços de manutenção especializada e a instalação de infraestruturas de carregamento. Este processo pode atrair investimento direto estrangeiro, impulsionar a criação de emprego qualificado e reforçar o posicionamento de Portugal nas cadeias de valor europeias associadas à mobilidade limpa. Para manter e reforçar a relevância do setor na economia nacional, será fundamental assegurar um enquadramento político e fiscal estável, investir na qualificação dos recursos humanos e intensificar a participação da indústria portuguesa em projetos europeus de I&D e inovação tecnológica. A transição energética, quando bem orientada, é também uma via para o reforço da competitividade do tecido produtivo nacional.
Como incentivar a escolha de um veículo elétrico?
Essa decisão continua fortemente condicionada por fatores como o custo inicial, a autonomia, a confiança na tecnologia e a disponibilidade da infraestrutura de carregamento. Apesar da evolução positiva, os incentivos públicos em vigor em 2025 são ainda insuficientes, e bastante complexos, para impulsionar uma adesão mais alargada, especialmente entre os consumidores com menor capacidade de investimento. A diferença entre a intenção de compra e a aquisição efetiva resulta, em grande parte, de três fatores: incerteza quanto à continuidade dos apoios; cobertura desigual da rede de carregamento; e falta de informação clara sobre os custos totais de utilização. A perceção de risco, aliada à limitação da oferta no mercado de usados, acaba por adiar decisões de compra. Para acelerar a adoção, a ACAP considera prioritário reforçar os apoios à aquisição de veículos 100% elétricos e híbridos; criar incentivos específicos para famílias e empresas de menor dimensão; garantir estabilidade e previsibilidade nas políticas públicas e melhorar substancialmente a rede de carregamento, em particular nas zonas residenciais e no interior do país.
Como acelerar a renovação da frota automóvel portuguesa sem prejudicar as famílias e pequenas empresas?
O envelhecimento do parque automóvel nacional constitui um dos principais entraves à concretização dos objetivos de descarbonização. A renovação do parque deve ser tratada como uma prioridade nacional, conduzida de forma socialmente justa e economicamente equilibrada, sem penalizar famílias ou pequenas e médias empresas. Nesse sentido, a ACAP propõe a criação de um programa robusto de incentivo ao abate, com regras claras, objetivas e facilmente acessíveis. A proposta contempla apoios à aquisição de veículos ligeiros elétricos ou eletrificados com primeira matrícula em Portugal, independentemente da modalidade de financiamento. O abate deverá aplicar-se a viaturas a combustão com mais de dez anos, também com matrícula nacional. O incentivo poderá atingir os 5.000 euros no caso de veículos 100% elétricos e abranger até 40.000 unidades, sendo que o processo de abate deverá decorrer sem custos ou encargos para os proprietários.
A transição energética exige também renovação da frota profissional e logística. Como vê a evolução das empresas de transporte e frotas comerciais?
A renovação das frotas profissionais e logísticas é um eixo decisivo da descarbonização no setor dos transportes. Verifica-se uma maior recetividade por parte das empresas, mas o ritmo da transição continua desigual, refletindo as disparidades de dimensão, capacidade de investimento e perfil operacional. Os constrangimentos são claros: o custo elevado dos veículos elétricos ou híbridos, a falta de soluções adaptadas a operações específicas e as limitações ainda existentes na rede de carregamento – sobretudo no acesso a pontos privados nas instalações – travam muitas decisões. Pequenas empresas, em particular, enfrentam maiores obstáculos, o que pode acentuar desigualdades no acesso à mobilidade sustentável.
Como pode a indústria automóvel portuguesa – e europeia – manter-se relevante neste contexto?
A indústria automóvel é um dos pilares estruturais da economia europeia. Segundo o Relatório de Draghi, trata-se de um dos dez setores estratégicos essenciais para a competitividade da União Europeia, assegurando, direta e indiretamente, cerca de 13,8 milhões de postos de trabalho. Este peso económico e social sublinha a importância de uma transição energética que não comprometa a competitividade da indústria nem o bem-estar europeu. O relatório alerta para os riscos de uma descarbonização mal gerida: sem uma estratégia industrial coerente e coordenada, a Europa pode perder protagonismo tecnológico, capacidade produtiva e autonomia estratégica, face a outras potências com políticas mais agressivas de apoio à indústria. Para garantir relevância futura, a indústria automóvel portuguesa e europeia deve apostar na inovação tecnológica e na liderança em mobilidade sustentável; reforçar a resiliência das cadeias de abastecimento e a produção interna de componentes críticos; investir na requalificação dos trabalhadores e na adaptação dos processos produtivos e defender políticas públicas que conciliem ambição climática com competitividade industrial.
Como vê o futuro da indústria automóvel em Portugal?
O futuro da indústria automóvel em Portugal será determinado pela sua capacidade de adaptação aos novos paradigmas da mobilidade, nomeadamente a descarbonização, a digitalização e a crescente exigência de valor acrescentado nas cadeias de produção. Trata-se de um setor com peso estrutural na economia nacional, responsável por uma parte significativa das exportações e com forte ligação à indústria europeia. Entre os principais desafios destaca-se a necessidade de manter a competitividade face a economias com menores custos de produção, cumprir metas ambientais cada vez mais exigentes e responder à rápida transformação tecnológica. A reconversão de competências e a atração de investimento qualificado serão cruciais num contexto de elevada concorrência internacional. Para enfrentar estes desafios, Portugal deve apostar numa estratégia industrial ambiciosa e coordenada, que valorize o conhecimento técnico, a inovação e a sustentabilidade. É fundamental garantir condições fiscais e regulatórias favoráveis, promover a requalificação dos trabalhadores, acelerar a eletrificação dos processos industriais e reforçar a participação nacional em projetos europeus de I&D.
A sustentabilidade do setor automóvel não passa apenas pela descarbonização. Que outras apostas devem ser feitas paralelamente?
A sustentabilidade do setor automóvel vai muito além da descarbonização dos veículos. Envolve toda a cadeia de valor, desde a conceção e fabrico até ao fim de vida dos produtos, incluindo o uso eficiente de recursos, a economia circular e a redução do impacto ambiental dos processos industriais. É fundamental apostar no ecodesign, na eficiência energética da produção, na reutilização e reciclagem de componentes e na redução da pegada ambiental ao longo do ciclo de vida dos veículos. Paralelamente, a digitalização e a manutenção inteligente podem contribuir para prolongar a vida útil dos veículos e reduzir desperdícios. Portugal dispõe de exemplos relevantes neste domínio. A Valorpneu e a Valorcar, ou a Sogilub, são sistemas integrados de gestão de resíduos que operam com elevados padrões de eficiência e responsabilidade ambiental. A Valorpneu assegura a recolha e valorização de pneus usados, enquanto a Valorcar garante o correto encaminhamento e desmantelamento de veículos em fim de vida e de baterias. Por sua vez, a Sogilub ocupa-se dos óleos usados. Estes sistemas são essenciais para assegurar que os materiais são reaproveitados de forma segura e sustentável, evitando impactos negativos no ambiente.