Moniz Pereira: o "velho leão" do atletismo
O "senhor atletismo", Mário Moniz Pereira, morreu este domingo aos 95 anos.
A história da vida de Moniz Pereira, noventa e cinco anos "bem vividos", confunde-se com a do atletismo, que amava como ninguém, e também com a do fado. Mesmo depois de fazer "quatro vezes vinte mais dez", como gostava de dizer, manteve o sorriso de felicidade e citava o refrão do fado que o celebrizou: "Valeu a pena".
Nos últimos anos, o ritmo de trabalho deixou de ser tão frenético e praticamente já não saia de casa, no bairro de São Miguel, em Lisboa. Quase se desligou do atletismo e teve tempo para voltar a ouvir música, como fado, de que era talentoso cultor. Um dos seus sucessos é o "Valeu a pena", que Maria da Fé celebrizou.
"Sempre fiz o que gosto com muita felicidade", assegurava aquele que Manuel Sérgio chamou de "maior treinador de todos os tempos". E o caso não é para menos: "fez" oito campeões de nível mundial e olímpico, a começar pelo lendário Carlos Lopes.
A "chama" do "velho leão", que Carlos Lopes abraçou logo que se sagrou campeão olímpico da maratona, em 1984, em Los Angeles, apagou-se este domingo, 31 de Julho, suavemente, em casa.
"O Sporting CP lamenta informar a morte do professor Mário Moniz Pereira, com 95 anos, pelo qual está de luto. O professor Mário Moniz Pereira é o símbolo máximo do ecletismo do Sporting CP e desporto nacional. O clube endereça as mais sentidas condolências à família e amigos", revela a nota publicada pelo Sporting na página no Facebook e que anunciou a morte do "sr. atletismo".
Mário Moniz Pereira, nascido a 11 de Fevereiro de 1921, em Lisboa, foi a referência do atletismo nacional no pós-guerra, especialmente depois do 25 de Abril. Sempre ao serviço do Sporting, de que era sócio número 2, e muitas vezes com a "camisola das quinas". Mas, fazendo da defesa do atletismo uma constante, próxima da intransigência.
Pelo Sporting foi, sucessivamente, atleta, seccionista, treinador e, por fim, vice-presidente, a partir da direcção de Santana Lopes.
Acabado o liceu, entrou para o INEF, actual Faculdade de Motricidade Humana. Já depois da II Guerra Mundial, dava aulas como assistente e iniciava os primeiros passos como treinador no clube.
O contacto com o estrangeiro, a partir de 1948, deu-lhe experiência. Aprender, sempre, era o seu lema.
A consagração, só veio depois de 1974, após muitos anos de luta e quando já centenas de atletas lhe tinham passado pelas mãos.
Conseguiu para os seus atletas a dispensa de meio dia de trabalho e isso foi o arranque para uma verdadeira "avalanche" de sucessos, com destaque para os títulos olímpicos e os recordes mundiais.
Duro e exigente no dia-a-dia, a ponto de ganhar fama de obstinado e fanático, era venerado por quase todos que com ele trabalharam.
Uma coisa não se lhe podia negar: o empenho militante com que defendia os interesses da modalidade, em contraposição com o futebol.
Portugal vive numa "ditadura futebolística", dizia para quem o quisesse ouvir... ele que até foi preparador físico da selecção nacional e muitas vezes era visto na tribuna da direcção "leonina" a assistir a jogos do "desporto-rei".
Irónico, mordaz, espírito vivo, apadrinhou iniciativas como a Associação de Amizade Portugal-Portugal, uma humorada "resposta" às associações de amizade que proliferaram a seguir à "revolução dos cravos".
O comando directo do atletismo do Sporting deixou-o após Barcelona 92. Mas o "senhor atletismo" - como já era chamado - não esqueceu a sua velha paixão. No seu gabinete na sede do "leão" continuava a preencher os seus caderninhos de registo de resultados, instrumento de trabalho inseparável desde há décadas. E a seguir tudo o que se passava na modalidade.
De vez em quando, descia à pista, afastava com diplomacia o treinador e dava o treino, cronómetro na mão, como nos velhos tempos. E nos bastidores, tudo passava por ele e analisava ao pormenor os adversários do Sporting, decidindo em última instância quem competia.
Quando já lhe faltavam as forças para ir até ao estádio, teve o prazer de ver o atletismo do seu clube de sempre ser assumido por um dos seus discípulos principais - Carlos Lopes, com que conquistou duas medalhas olímpicas.
Reacções emocionadas
Este atleta, que foi o primeiro a conquistar para Portugal uma medalha de ouro nos Jogos Olímpico, acredita que os atletas que competirão no Rio2016 "vão lutar por uma medalha que possa honrar a memória" de Mário Moniz Pereira.
O primeiro campeão olímpico português, em 1984, então treinado por Moniz Pereira, mostrou-se, em declarações à Sporting TV, emocionado com a "perda tremenda" de um homem que marcou o atletismo, "pela dedicação, talento, trabalho e sacrifício".
"Com ele, havia sempre alegria no treino", disse o actual responsável pelo atletismo do Sporting, que, com Moniz Pereira, arrecadou uma medalha de prata em Montreal'76 e uma de ouro em Los Angeles'84.
"Ele acreditou que era possível eu tornar-me num campeão. A medalha de prata em 1976, antes mesmo do ouro em 1984, foi o indício de que estava a nascer uma era dourada do atletismo nacional", disse Lopes, para quem Moniz Pereira será sempre "o Senhor Atletismo".
Lopes destaca a "crença sem reservas no trabalho e no valor dos seus atletas", que sempre acreditou que, com condições iguais, podiam conseguir resultados de excelência. "Marca-me para sempre a figura dele, como pessoa, como homem. Não temos muitas palavras, agora", concluiu.
Na morte é recordado por todos não apenas como homem do Sporting, mas do desporto nacional. O primeiro-ministro, António Costa, lamentou a morte de Moniz Pereira, lembrando as suas múltiplas capacidades e funções no desporto. "As minhas condolências à família do Prof. Moniz Pereira, grande atleta, recordista, dirigente e treinador de campeões", escreveu o governante, no seu twitter.
As minhas condolências à família do Prof. Moniz Pereira, grande atleta, recordista, dirigente e treinador de campeões.
Numa nota enviada à Lusa, António Costa acrescentou que "poucos personificaram o espírito olímpico como [o professor] Moniz Pereira" e que a melhor homenagem que se pode dedicar "é disputar com desportivismo os Jogos que se avizinham".
"Sportinguista apaixonado, tive o privilégio de o ter por guia na visita que há anos fiz ao museu do Sporting, onde tantas vezes nos surge, como atleta múltiplo, treinador ímpar e dirigente dedicado", escreveu António Costa, pelo seu punho, numa nota pessoal enviada à agência Lusa.
António Costa destaca ainda Moniz Pereira como um "grande fadista, com centenas de letras cantadas".
"Podemos hoje repetir sobre Moniz Pereira dois versos escritos para Carlos Ramos e que Maria da Fé popularizou: 'Valeu a pena ter vivido o que vivi (...). Valeu a pena Sonhar o que sonhei'. Valeu a pena Professor Moniz Pereira", escreve António Costa.
Também o Presidente da República lamentou a morte do professor Moniz Pereira, definindo-o como um "homem bom", com vida de devoção "ao desporto e aos desportistas" e uma "glória do atletismo" em Portugal.
"Foi com muita emoção que o Presidente da República tomou conhecimento do falecimento do professor Moniz Pereira. Era um Homem Bom, que deixa uma vida repleta de bons exemplos, de devoção ao Desporto e aos desportistas, tendo ele próprio sido uma glória do atletismo nacional", refere um comunicado da presidência enviado à agência Lusa.
"Na véspera dos Jogos Olímpicos, o seu exemplo reforça ainda mais a vontade de todos os desportistas nacionais de se superarem e obterem resultados que o honrem e o recordem como grande motivador do nível que o nosso atletismo e nosso desporto têm atingido", assinala o texto.
Marcelo Rebelo de Sousa sublinha "que em todos os que, ao longo dos anos, tiveram o privilégio de o conhecer, deixa o tesouro de uma memória calorosa e dedicada", antes de apresentar "sentidas condolências" à sua família, à Federação Portuguesa de Atletismo e a todos os amigos.
Mais lidas