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“A Europa não tem de ficar entalada entre um confronto de dois blocos”

Para António Costa, o grande acordo estratégico que o presidente Trump pretendia obter era o da defesa europeia, com a Europa a assumir na próxima década, responsabilidades crescentes e a reduzir os encargos suportados pelos Estados Unidos.

26 de Junho de 2025 às 15:30
Costa e Barroso conversam sobre desafios europeus e relações transatlânticas
Costa e Barroso conversam sobre desafios europeus e relações transatlânticas
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José Manuel Durão Barroso, antigo presidente da Comissão Europeia, conversa com António Costa, presidente do Conselho Europeu, sobre os desafios da Europa e o estado atual das relações transatlânticas.

O presidente do Conselho Europeu, António Costa, participou na The Lisbon Conference, numa conversa com José Manuel Durão Barroso, antigo presidente da Comissão Europeia e curador da conferência. A intervenção foi gravada, uma vez que, na mesma data da conferência, António Costa esteve presente na reunião do G7 em Kananaskis, no Canadá.

Durante a conversa, reconheceu que “vivemos um momento de alguma incerteza e imprevisibilidade” na relação transatlântica, sobretudo nos domínios da defesa e do comércio. Ainda assim, sublinhou que a parceria entre a Europa e os Estados Unidos tem uma dimensão estrutural que vai além de qualquer ciclo presidencial. Questionado sobre as recentes tensões no plano comercial, António Costa afirmou que “se formos objeto de medidas tarifárias primeiro, teremos de responder. A Comissão Europeia está preparada para responder designadamente em matéria comercial. Mas tudo devemos fazer para evitar uma escalada”.

Segue-se uma síntese das principais ideias deixadas por António Costa na conversa conduzida por Durão Barroso.

 Qual é o estado atual das relações entre a União Europeia e os Estados Unidos?

As relações transatlânticas são suficientemente sólidas e antigas para poderem perdurar, mesmo num período de incerteza. Existe também outra dimensão transatlântica com países como o Canadá, a Noruega ou a Islândia, que tem vindo a ser bastante reforçada. Com os Estados Unidos, vivemos num momento de alguma incerteza e imprevisibilidade.

Há dois temas fundamentais em cima da mesa. Um é a defesa, o outro é o comércio. O que é pena é misturamos ambos, porque a verdadeira questão central do ponto de vista americano, tem origem, pelo menos, no mandato de Obama, é a consciência dos Estados Unidos terem uma nova prioridade geoestratégica mais centrada no Pacífico, o que implica uma redução do seu investimento na defesa europeia.

Essa prioridade já não é contraditória com a visão que a Europa tem de si própria, uma vez que, desde março de 2022, assumimos claramente que queremos reforçar a responsabilidade da nossa própria defesa. A questão central que deveríamos estar a discutir é como, num prazo aceitável para ambas as partes, conseguimos reforçar a responsabilidade europeia e aliviar os encargos dos Estados Unidos com a NATO, sem fragilizar a credibilidade do efeito dissuasor do artigo 5.º do Tratado da NATO.

Compreendo a sua posição diplomática, até pelas funções que exerce. Mas a verdade é que, para além das questões ligadas à defesa e às relações comerciais, o presidente Trump tem tomado posições genéricas sobre a Europa que são, no mínimo, difíceis de aceitar. Quando afirma, como o fez, e cito quase literalmente, que “a União Europeia foi criada para ‘screw’ (prejudicar) os Estados Unidos”, está, na prática, a posicionar a União como um adversário.

Temos de manter e prosseguir o nosso diálogo institucional com os Estados Unidos. Não temos de responder a cada tweet ou a cada decisão tornada pública. Porque, como temos visto ao longo destes meses, muitas das decisões anunciadas acabam revertidas, suspensas ou adiadas nos dias seguintes. Devemos continuar com este diálogo de forma construtiva.

Hoje o mundo é multipolar. A Europa não tem de ficar esmagada ou entalada num confronto entre dois blocos. Pelo contrário, a Europa tem uma grande oportunidade, e o dever, de desenvolver uma rede de parcerias à escala global com o Brasil, a África do Sul, a Índia, a Indonésia, a Nigéria. Uma multiplicidade de atores internacionais que olham hoje para a Europa com maior interesse, porque associam a Europa a dois valores essenciais, a previsibilidade e a confiança.

Temos agora duas ferramentas fundamentais, que são os relatórios Draghi e Letta, as bíblias deste novo ciclo institucional. Temos um calendário e uma estratégia aprovados em Budapeste e pela Comissão Europeia, e a Comissão Europeia começou a apresentar propostas na área da simplificação, na área da União de Capitais. António Costa, Presidente do Conselho Europeu

A Europa tem perdido competitividade em relação aos Estados Unidos, e não só. Estará preparada para fazer as reformas necessárias para recuperar parte dessa competitividade e melhorar o seu desempenho económico? Estará o conjunto de países europeus disposto a responder, caso se concretizem as ameaças do presidente Trump em matéria comercial? 

Temos agora duas ferramentas fundamentais, que são os relatórios Draghi e Letta, as bíblias deste novo ciclo institucional. Temos um calendário e uma estratégia aprovados em Budapeste e pela Comissão Europeia, e a Comissão Europeia começou a apresentar propostas na área da simplificação, na área da União de Capitais, e há uma vontade política muito clara no Conselho Europeu, como nunca vira, para romper e vencer alguns dos tabus.  A União de Capitais é um tema que se arrasta desde a fundação do mercado único, em 1992, e tem sido sucessivamente adiada. Hoje há uma clara vontade política de avançar. Claro que o diabo está sempre nos detalhes e, quando se chegar ao nível dos ministros das Finanças, surgirão muitos diabos nesses detalhes.

A Europa parece ter medo de dizer “União de Mercado de Capitais”. Já referi que isso acontece porque muitos políticos europeus não gostam da palavra capital, não gostam da palavra mercado e não gostam da palavra União.

Felizmente são raros os que não gostam das três. Mas neste momento há vontade política e capacidade de tomar decisões nesse sentido. Outra questão tem a ver com a guerra comercial com os Estados Unidos, que queremos evitar. A Comissão apresentou a proposta mais generosa que podia, tarifas zero para ambos os lados. Uma proposta que os Estados Unidos não podem aceitar, porque a administração Trump pretende aumentar as receitas aduaneiras para compensar a redução da receita resultante do desagravamento fiscal. Por isso, não podem aceitar tarifas zero.

Tenho esperança porque acredito que, no fim de tudo, há uma linha de racionalidade que orienta a ação política. Primeiro, tarifa significa mais impostos, maiores custos e maior inflação nos Estados Unidos. Nenhuma tarifa vai aumentar as exportações de bens ou serviços americanos para a Europa. A racionalidade económica é, portanto, muito duvidosa.

Depois de 80 anos em que os Estados Unidos sustentaram de forma significativa a defesa europeia, o que se devia estar a discutir é como, na próxima década, a Europa vai assumir progressivamente maiores responsabilidades, desonerando cada vez mais os Estados Unidos. Todas as discussões que perturbem a economia americana ou europeia só complicam e dificultam este exercício.

A audiência da The Lisbon Conference assiste à conversa entre Durão Barroso e António Costa.

Um novo modelo de governação para a NATO

José Manuel Durão Barroso questionou António Costa sobre a viabilidade de uma defesa europeia integrada, perguntando se acredita que haverá uma comunitarização da defesa europeia e em que horizonte temporal. Alertou ainda que, se o aumento de recursos não for acompanhado de coordenação, a situação pode mesmo agravar-se, devido à fragmentação existente.

António Costa respondeu sublinhando que a invasão da Ucrânia pela Rússia marcou um momento de transformação para a Europa. “Hoje a Europa é completamente diferente.” Assinalou que, nos últimos três anos, os gastos em defesa aumentaram 30% e que, em 23 Estados-membros aliados na NATO, já foi atingido o objetivo de 2% do PIB.

O presidente do Conselho Europeu sublinhou que a prioridade não deve ser apenas gastar mais, mas gastar melhor. Defendeu o investimento em equipamentos interoperacionais, a agregação de encomendas e a realização de compras conjuntas, argumentando que não são necessárias 27 grandes forças armadas, mas sim um sistema robusto de defesa coletiva.

Para o presidente do Conselho Europeu, “o que interessa não é um número mágico, o que interessa é dizer quais são as capacidades que temos que preencher rapidamente para assegurarmos a nossa defesa coletiva”. António Costa propôs também uma reorganização do modelo de governação da NATO, atualmente liderada por um general americano com um número dois britânico. Defendeu que, nas negociações com os Estados Unidos, é necessário rever não só a repartição do esforço financeiro de uma forma mais justa, mas também alterar a governação de todo o nosso sistema de defesa.

Considerou que a União Europeia deve continuar a ser a entidade política de referência, sem duplicar ou substituir a NATO enquanto instituição militar. O objetivo, concluiu, deve ser negociar como assumir, de forma progressiva, maiores responsabilidades, aliviando o peso que recai sobre os Estados Unidos, mas mantendo a credibilidade do artigo 5.º do Tratado da NATO.

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