Apenas uma página beirã
Precisava de vir a estes Montes da Senhora (belo nome!) para fugir à mentira generalizada e à falta de pudor que parece não ser estanque. Nesta gente que me fala e me vem cumprimentar, como ao foragido que voltou, há a grandeza da decência e da integridade.
Aqui, onde estou, numa aldeia isolada, não ouço as mentiras e corto as aflições com a música deste silêncio perfumado. Há muitos anos, quando cheguei pela primeira vez, o mundo parecia mais sossegado, mas não era nem estava. A beleza, direi perfeita, do sítio impôs-se-me de tal modo que escrevi, para o Diário Popular, jornal de que era redactor, uma crónica que assim começava: "Escrevo no balcão da casa de piçarras negras, no último dos meus dias beirões." O texto obteve um eco inusitado: falava, com modéstia e comoção, dos homens que saíram por dois meses, os "ratinhos" ou "gaibéus", que desciam ao Ribatejo para auferir a miséria ultrajante de pouco mais de mil escudos. Melhor do que outro qualquer, Alves Redol escreveu dos emigrantes do interior, em páginas arrebatadoras. Eu gostava de conversar com os velhos, bebia com eles o vinho da terra e tentava apreender essa sabedoria milenar criada pelas rotinas desgraçadas do tempo. Recordo dois deles: o tio João Garrido e o tio Canhoto, e reparo, agora, que tenhoa idade que eles tinham, na falta que me fazem. A evocação das conversas moldou-me o rosto paciente, rugoso, porém sereno, desses dois velhos curtidos pelo sol, pelo trabalho insano e por qualquer mistério de esperança e fé que animava as suas vidas.
A casa de piçarras negras é, agora, um edifício cimentado, e onde estou, neste momento, é uma construção antiga, reconvertida e extremamente confortável. Aparecem parentes antigos da minha mulher, meus parentes de então e de hoje, e mergulho, com aprazimento, nessa felicidade imensa de conversar da terra e das pessoas que a compõem. Não são muitas: os novos têm ido para outras paragens, e os velhos, como eu velho, perguntam-me o porquê de tudo isto, como se pudesse explicar a natureza das violências que a ganância e o lucro sem medida impõem com rudeza.
Precisava de vir a estes Montes da Senhora (belo nome!) para fugir à mentira generalizada e à falta de pudor que parece não ser estanque. Nesta gente que me fala e me vem cumprimentar, como ao foragido que voltou, há a grandeza da decência e da integridade, a raiz genuína e inicial das coisas. Não vinha à aldeia há muitos anos, e faltava-me, ou esquecera, a força primordial do mundo. Talvez esteja a lembrar-me do Jacinto de "A Cidade e as Serras", talvez; mas não é mau embalar um pouco as saudades: ter saudades é ter lastro, ter história, ter feito algum sulco por onde se passou.
E aqui estou, com o meu amor de rapaz, ambos de cabelos brancos e com os achaques comuns a quem não desistiu. Como é a letra do Ary?, cantada pelo Carlos do Carmo? "Eu sou o homem na cidade (…) e por amar a liberdade / de trabalhar nunca se cansa." Isso mesmo e assim mesmo. Um dos meus filhos, tenho três e dois netos, veio connosco. É o Miguel, um calmeirão de alma lírica, e ainda há poucos minutos estivemos os dois a conversar lentamente, e recordei um livro antiquíssimo, "Retratos e Elogios dos Varões e Donas", de Pedro José de Figueiredo, no qual se diz que não há santos impolutos nem homens perfeitos, mas que o objectivo das pessoas deverá ser, primordialmente, melhorar a sua própria condição, removendo a avidez, a cobiça e a descompostura do carácter e da feição. Não queríamos, mas, no fundo, discreteávamos dos escândalos morais que nos atravessam sem que disso tenhamos a mínima culpa.
"O mundo está a mudar, e eu não tenho já pedalada para resistência para suportar tudo isto", disse eu. Da janela ampla viam-se as sombras maciças das montanhas, ao longe.
b.bastos@netcabo.pt
Mais lidas