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Edson Athayde - Publicitário e Storyteller
16 de Dezembro de 2020 às 19:02

A Arte de Perder N.º 2

Se palavras e números são instrumentais para entendermos a pandemia, na minha opinião, não são suficientes. Palavras e números explicam o que dá, contabilizam o passado, racionalizam o presente, sinalizam cenários futuros, mas nada disto é tão preciso, tão pessoal e intransferível.

“A arte de perder não é nenhum mistério;

Tantas coisas contêm em si o acidente

De perdê-las, que perder não é nada sério.”

Recupero o título de uma crónica que aqui publiquei no começo do ano. E também um poema homónimo, da escritora americana Elizabeth Bishop. Se antes da pandemia “A Arte de Perder” inspirou-me um texto sobre o sucesso e o fracasso nas empresas, hoje leva-nos a outros lugares, outras paisagens. Como a vida mudou em apenas 10 meses.

Palavras e números regem o mundo. Vivemos dentro de vocábulos, para tudo há uma verbalização. O que não cabe em palavras não existe. Quando miúdos, nós todos experimentámos isto. Lembra-se?

Ficávamos atónitos frente a experiência da morte, por exemplo. O primeiro velório, o que era aquilo que estava a acontecer ao vizinho ou à avó? Havia vácuo de palavras, um abismo à nossa frente, até que um adulto explicava do jeito que dava e conseguia um conceito imenso que cabia em apenas cinco letras, seja “morte” ou seja “perda”.

Números são igualmente dominantes. A morte de um indivíduo conhecido é uma tristeza. Comparável a morte de 10 desconhecidos da mesma cidade, 500 do mesmo país, 5.000 da mesma região. A partir daí a geografia afasta sentimentos, a morte de um milhão noutro continente não passa de uma notícia, ou seja, um tipo de frase solta que ouvimos no telejornal, mais ou menos displicentemente, antes de conferimos os resultados do Euromilhões. Que se ganharmos, será uma alegria. Se perdermos, uma tristeza, mas sobre esta palavra já falámos.

“Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,

A chave perdida, a hora gasta com bobagens.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:

Lugares, nomes, a escala subsequente

Da viagem não feita. Nada disso é sério”.

Esta pandemia (que ainda vai a meio) provocou a perda de milhões de vidas direta ou indiretamente, sem falar nos sonhos perdidos, futuros perdidos e tantas outras coisas que nem queremos crer que estamos ou ainda vamos perder.

Daí que “perda” seja a palavra do ano.

Os mais cínicos poderão argumentar que os laboratórios farmacêuticos vão ganhar dinheiro, que certos políticos vão ganhar poder, que alguns cientistas vão ganhar prestígio, que igrejas e seitas vão ganhar rebanho.

É, não nego. Quanto maior a dimensão da perda, maior é o volume de migalhas de vitórias espalhadas. Porém, não devemos nos concentrar na exceção e sim na regra. Eu não sou pastor, nem infetologista, nem deputado, nem barão dos remédios. Acredito que também não seja o seu caso. Adiante.

“Perdi o relógio de minha mãe. Ah! E nem quero

Lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império

Que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.”

Se palavras e números são instrumentais para entendermos a pandemia, na minha opinião, não são suficientes. Palavras e números explicam o que dá, contabilizam o passado, racionalizam o presente, sinalizam cenários futuros, mas nada disto é tão preciso, tão pessoal e intransferível.

Cada um terá de aprender a gerir as suas próprias perdas, de exercitar a sua “arte de perder”. Em 2020, fizemos pouco mais do que isto. Vamos ver como corre 2021.

“Mesmo perder a si (a voz, o riso etéreo

que eu amo) não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser mistério

por muito que pareça (Escreve!) muito sério.”

Ou como resumiu o meu Tio Olavo: “A arte de perder não é nenhum mistério.” 

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