Devemos alargar o englobamento?
O mecanismo do englobamento está umbilicalmente ligado à tributação progressiva dos rendimentos. Se a ideia é tributar a uma taxa mais alta quem tem mais rendimentos, então é preciso somar os rendimentos de todas as fontes (englobar) para sabermos que o contribuinte A tem maior rendimento que o B e que, portanto, devemos aplicar-lhe uma taxa mais elevada no IRS.
PUB
Nos rendimentos englobados - sobretudo trabalho e pensões - o IRS é efetivamente progressivo. Se tomarmos como exemplo um casal com dois filhos e rendimentos de trabalho dependente, vemos que a taxa efetiva de IRS é de zero para dois salários de 700 euros; 5,8% para 1.000 euros; 18% para 2.000 euros; 28% para 4.000 euros; 35% para 8.000 euros; e 40% quando ambos ganham 16.000 euros brutos. As taxas efetivas são mais baixas do que as taxas marginais, e estas dão uma perceção exagerada do encargo efetivamente suportado, que resulta da interação de várias taxas e deduções.
Os rendimentos patrimoniais não são obrigatoriamente englobados e são sujeitos a uma taxa autónoma de 28%. Para os rendimentos patrimoniais mais baixos, o contribuinte até tem vantagem em optar pelo englobamento. A partir de certo nível de rendimentos deixa de ter, mas a sua taxa efetiva nunca vai ultrapassar 28%. Se compararmos com o contribuinte que apenas tem rendimentos do trabalho, vemos que o tal casal com dois filhos passa esse patamar (28%) cerca dos 56.000 euros anuais por pessoa. É aqui que está a desigualdade do não englobamento: a progressividade no IRS faz-se apenas à custa dos rendimentos de trabalho e pensões mais elevados, cuja taxa média vai passar os 30 e depois os 40%, e cuja taxa marginal mais elevada é superior a 50%.
PUB
O nosso IRS nunca englobou os rendimentos de capital (salvo uma experiência prontamente abandonada no 2.º Governo de Guterres) e desde 2014 transformou-se num imposto dual (progressivo para rendimentos de trabalho e pensões, taxa fixa para rendimentos patrimoniais), seguindo a tendência iniciada há cerca de três décadas nos países escandinavos. A opção justifica-se porque é muito difícil tributar os rendimentos patrimoniais às taxas progressivas mais elevadas - as tais taxas marginais próximas de 50%. Por um lado, porque é possível parquear esses rendimentos em pessoas coletivas, cuja taxa de imposto foi descendo em todo o lado para próximo de 20%. Por outro, porque os rendimentos patrimoniais são móveis: o investimento pode deslocar-se para o estrangeiro, sendo aí ocultados os rendimentos.
PUB
A questão da desigualdade de taxas efetivas nos rendimentos mais elevados é uma questão que tem pouco a ver com a tributação da esmagadora maioria dos portugueses. Cerca de 90% dos agregados concentram-se abaixo dos 32.500 euros de rendimento bruto anual e pagam um IRS muito inferior a 28%. Mas nos 10% de agregados mais ricos (em que quase todos se considerarão de "classe média") a progressividade fez-se sobretudo do lado do trabalho e das pensões, com taxas cada vez mais elevadas nos últimos anos. Pareceria assim ser uma medida de inteira justiça que o englobamento abrangesse todos os rendimentos.
Essa justiça no plano teórico enfrenta contudo dois tipos de dificuldades importantes.
PUB
Em primeiro lugar, o potencial do englobamento é menor do que o que se pode pensar. Por exemplo, nos dividendos, porque os lucros já pagaram IRC, o mecanismo de alívio da dupla tributação económica faz com que a taxa efetiva em englobamento seja menor do que a taxa de tributação autónoma. As mais-valias, dado o seu caráter ocasional, merecem provavelmente o mesmo tratamento (como acontece às que hoje são englobadas).
PUB
Em segundo lugar, é evidente que o englobamento criaria um incentivo para que os rendimentos fossem transferidos, ou para o estrangeiro, ou para sociedades criadas para o efeito (provavelmente ambas as deslocações em simultâneo). Essa deslocação é mais fácil e compensadora para os titulares de maiores rendimentos patrimoniais e que menos precisem da sua disponibilidade imediata - precisamente aqueles que se visaria atingir com o englobamento. Provavelmente, as únicas famílias verdadeiramente afetadas seriam aquelas que acumulam alguns rendimentos de trabalho ou pensões com rendas cujo valor é insuficiente para justificar operações complexas de planeamento fiscal.
Percebo a sedução da ideia de englobamento de todos os rendimentos, sobretudo se associada a uma descida das taxas marginais mais elevadas ou, melhor ainda, a uma subida dos limites dos escalões a que elas se aplicam. Não creio contudo que neste momento o englobamento atingisse os seus objetivos distributivos, e significaria perda de receita fiscal e perda de investimento em Portugal.
PUB
Professor de Direito
Mais Artigos do autor
Mais lidas
O Negócios recomenda