Joaquim Aguiar 08 de Dezembro de 2016 às 19:42

2016 - Fim de uma estrutura de ordem

Na hierarquia dos anos históricos, 2016 deverá ser o marco que sinaliza o fim da estrutura de ordem configurada e dominada por potências ocidentais, consumando o fim dos impérios europeus com o que aparece agora como estando a ser o fim do império americano.

O traço mais relevante deste ano histórico é que este é um processo que se apresenta como um efeito de imunodeficiência, que estimula a manifestação súbita de formas patológicas e destrutivas numa estrutura que, até agora, parecia estável e coerente. As potências ocidentais não foram derrotadas por poderes superiores, elas foram fragmentadas e desagregadas porque os seus sistemas políticos deixaram enfraquecer aquele que é o seu principal dispositivo de defesa contra as mutações patológicas e os vírus agressivos: os procedimentos eleitorais.

 

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Os sistemas democráticos dependem do seu processo de identificação da legitimidade do poder, que articula a sociedade com a política para designar quem exerce o poder e como o poder deve estabelecer as orientações estratégicas da economia e da sociedade. Quando esta articulação é perturbada, os procedimentos eleitorais tornam-se instáveis, produzem descontinuidades nas tendências eleitorais conhecidas e deixam os candidatos ao exercício do poder divididos entre os que preferem responder às ansiedades dos eleitores (referenciados ao passado) e os que assumem a responsabilidade de identificar o que é o campo de possibilidades em que as sociedades irão evoluir (referenciando os eleitores em função do futuro). Uns são populistas, nacionalistas e proteccionistas, ficando com metade do eleitorado. Outros são globalistas, modernizadores e construtores de novas instituições, ficando com a outra metade do eleitorado. As sociedades ficam divididas e os sistemas políticos ficam bloqueados - a partir daqui, é a crise que comanda a crise, já não há defesa contra as formas patológicas e destrutivas.

 

Este é um processo de revelação súbita, mas de gestação longa. Assiste-se agora à resolução da passagem dos sistemas organizados em espaços (os Estados, os impérios, as fronteiras, as ordens internas, os eleitores soberanos) para os sistemas evoluindo em fluxos (os movimentos dos capitais, das tecnologias, das pessoas e dos produtos, as geometrias variáveis e os eleitores interdependentes). O que estava latente no campo de possibilidades concretizou-se em realidade súbita. O problema é que os sistemas políticos e os partidos dominantes foram concebidos e organizados em função dos espaços e nem os sistemas políticos nem os partidos conseguem resolver a polarização que resulta de metade dos eleitores escolherem em função dos espaços e a outra metade em função dos fluxos.

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Nestas circunstâncias, recorrer ao referendo torna evidente a imunodeficiência nos sistemas políticos, multiplicando-se as patologias: perdem os que antes ganhavam, ganham os que antes nem sequer existiam. As derrotas de Cameron, de Hillary Clinton, de Renzi, de Hollande, de Obama, são os sinais exteriores da desagregação, por vontade do eleitor soberano, da ordem mundial que garantiu a liberdade e a prosperidade desses eleitores. Quando a estrutura de ordem mundial é posta em causa naquele que é o centro hegemónico dessa época (em primeira linha, nos Estados Unidos e, subsidiariamente, na União Europeia), todos os referenciais de orientação perdem nitidez e entra-se num tempo de incerteza, onde não há uma tendência geral que sirva de padrão e onde não há aliados em que se possa confiar.

A política não é só a arte do possível, também é a arte de usar a evidência do impossível para reconduzir as sociedades e os sistemas políticos ao reconhecimento do possível. Quando os sistemas políticos ficam confrontados com um abismo que se abriu subitamente à sua frente - porque é disso que se trata quando o poder hegemónico que estruturava a ordem mundial existente renuncia à sua responsabilidade -, terão de se servir do impossível para tentar voltar ao possível.

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Analista político

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