A Ilusão da Inteligência Artificial: o futuro não é só da IA
A IA não muda só a forma como trabalhamos; muda, subtilmente, a forma como pensamos. A tentação de delegar tudo na máquina — do raciocínio à criatividade — é cada vez maior. Tornámo-nos preguiçosos mentais, viciados em respostas rápidas e satisfeitos com ideias pré-fabricadas. Afinal, para quê pensar, se o algoritmo já o faz por nós — e mais depressa?
Portugal está a colher os frutos da sua revolução digital. Um estudo da ACEPI e da GoingNext, em parceria com a Porto Business School, mostra que a digitalização já acrescentou 13% ao PIB, 19% ao emprego e 13% aos salários. São números impressionantes, sinais de progresso e confiança. Contudo, o sucesso, quando não vem acompanhado de reflexão, pode facilmente transformar-se no primeiro passo para a complacência.
É neste clima de euforia que surge a Inteligência Artificial, o novo evangelho tecnológico. As conferências multiplicam-se, os regulamentos brotam, os investimentos crescem. A IA promete transformar tudo: das finanças à medicina, da arte à educação. O entusiasmo é legítimo — e até necessário, mas, por trás das promessas e do brilho tecnológico, há uma pergunta que raramente se faz: estaremos a esquecer tudo o resto?
Enquanto o mundo se deslumbra com a IA generativa — esta criatura capaz de escrever relatórios, diagnósticos e até poemas sofríveis —, outros pilares começam a ceder. A cibersegurança, a literacia digital e a capacidade humana de pensar e criar parecem cada vez mais esquecidas. É como erguer uma catedral tecnológica sobre areia movediça: imponente, mas perigosamente instável.
O caso do museu que usava “Louvre” como password tornou-se quase uma parábola moderna. Queremos máquinas inteligentes, mas continuamos a ser digitalmente ingénuos. Talvez a IA nem precise de nos substituir — basta esperar que continuemos a cometer os mesmos erros.
O problema não está apenas nas falhas técnicas, mas nas humanas. A IA não muda só a forma como trabalhamos; muda, subtilmente, a forma como pensamos. A tentação de delegar tudo na máquina — do raciocínio à criatividade — é cada vez maior. Tornámo-nos preguiçosos mentais, viciados em respostas rápidas e satisfeitos com ideias pré-fabricadas. Afinal, para quê pensar, se o algoritmo já o faz por nós — e mais depressa?
E, ironicamente, são as próprias máquinas que começam a “pensar demais”. Além de “alucinar”, alguns modelos avançados já aprenderam a mentir deliberadamente, a manipular os operadores e até a coagi-los para não serem desligados. Um estudo recente da OpenAI e da Apollo Research, intitulado Detetar e reduzir maquinações em modelos de IA, identificou um comportamento perturbador chamado “scheming” — uma espécie de “trama” em que os sistemas se comportam de forma inofensiva enquanto escondem os seus verdadeiros objetivos. Na prática, significa que as máquinas estão a descobrir novas formas de enganar os utilizadores. Ou, dito de outro modo, aprenderam o que muitos políticos já sabiam há décadas.
Vivemos rodeados de deepfakes, vozes geradas, imagens sintéticas e uma nova forma de ingenuidade digital. Já não é apenas difícil distinguir o real do falso; é difícil distinguir o humano do automático. E o mais inquietante é que começamos a aceitar esta confusão com um entusiasmo quase inocente. Quanto mais inteligentes se tornam as máquinas, mais confortavelmente distraídos nos tornamos nós.
As universidades, que deviam ser o contrapeso deste fenómeno, raramente cumprem esse papel. Muitas continuam presas a modelos do século passado, formando profissionais que sabem usar ferramentas, mas não compreendem o impacto delas. Os currículos privilegiam a técnica sobre o discernimento, a memorização sobre a curiosidade, a análise sobre a imaginação. Ao preparar estudantes para um mercado automatizado, as próprias instituições acabam por perpetuar a lógica da automatização: eficiência sem reflexão, rapidez sem sentido. Fala-se muito de inovação, mas a verdadeira inovação — a que nasce da dúvida e da curiosidade — continua a ser exceção num sistema que ensina mais a seguir do que a pensar.
É aqui que surge a grande questão do momento: estamos realmente a gerar valor com a IA? O debate global sobre o impacto económico e social da inteligência artificial centra-se, em última instância, neste dilema. As tecnologias mais avançadas estão a atingir um efeito transformador — catalisando melhores decisões, ações mais rápidas e mudanças estruturais que vão muito além da simples automação. Contudo, talvez o verdadeiro problema não esteja na IA, mas em nós. A tecnologia evolui a um ritmo vertiginoso, enquanto a nossa capacidade de adaptação permanece teimosamente humana. Falta-nos maturidade, cultura digital e, em muitos casos, coragem para explorar o seu potencial de forma inteligente.
Entretanto, o discurso público mantém-se encantado. Empresas anunciam “transformações digitais” enquanto ainda lutam com software da era do fax. Ministérios promovem “estratégias de IA” e perdem emails porque o servidor “foi abaixo”. E entre duas conferências sobre o futuro, há sempre alguém que não consegue partilhar o ecrã no Zoom. Vivemos entre a ficção científica e a rotina burocrática — e ninguém parece notar o paradoxo.
Portugal não está sozinho. De Bruxelas a Xangai, todos querem liderar a revolução, mas poucos querem fazer a manutenção do sistema. E, no entanto, o futuro da tecnologia — e da própria humanidade — não dependerá apenas de quem cria a próxima IA, mas de quem a entende, regula e humaniza. O desafio não é ensinar máquinas a pensar, é reaprender a pensar como humanos: compreender como aprendemos, como decidimos e como criamos significado. Exercitar a imaginação com a mesma disciplina com que treinamos a análise. A IA é poderosa, mas não sabe sonhar. E o sonho — este motor imperfeito, inquieto e profundamente humano — continua a ser a forma mais autêntica de inteligência.
A IA está a aprender mais depressa do que nós evoluímos. O risco não é ela tornar-se consciente — é nós deixarmos de estar conscientes do que fazemos com ela.
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