O fantasma da máquina da recuperação
O "World Economic Outlook" de Outubro do Fundo Monetário Internacional (FMI) proclamava que "as fortes políticas públicas promoveram uma retoma da produção industrial, do comércio mundial e das vendas no retalho". O FMI, de par com muitos líderes nacionais...
O "World Economic Outlook" de Outubro do Fundo Monetário Internacional (FMI) proclamava que "as fortes políticas públicas promoveram uma retoma da produção industrial, do comércio mundial e das vendas no retalho". O FMI, de par com muitos líderes nacionais, parece crer que as políticas que foram implementadas vão pôr realmente fim à recessão económica global.
De facto, os líderes nacionais e as organizações internacionais merecem bastante crédito pelo que tem estado a ser feito, desde a Primavera, para haver sinais de recuperação. A coordenação internacional das políticas económicas mundiais, tal como formalizado na recente declaração do G-20, não tem precedentes na História.
Mas também podemos dizer que os dirigentes políticos se proclamaram vitoriosos um pouco depressa de mais. Afinal de contas, as recessões tendem, de uma forma geral, a chegar ao fim por elas mesmas, antes mesmo de os governos aplicarem medidas de estabilização. A título de exemplo, nos Estados Unidos, as recessões de 1857-8, 1860-61, 1865-7, 1882-85, 1887-88, 1890-91, 1893-94, 1895-97, 1899-1900, 1902-04, 1907-8 e 1910-12 terminaram todas sem ajuda da Reserva Federal norte-americana, que só foi criada em 1914.
Há muito tempo que os economistas desenvolveram modelos que descrevem a forma como as recessões acabam por si mesmas. No seu livro de 1959, intitulado "The Business Cycle", R. C. O. Matthews, economista da Universidade de Cambridge, sintetizava - no capítulo " The Lower Turning Point" - uma série de factores que os teóricos dos ciclos económicos daquela época diziam que permitiam entrar automaticamente na via da retoma.
A título de exemplo, a procura de bens de investimento pode retomar, especialmente em determinados sectores mais penalizados, depois de uma recessão ter levado a que o capital físico se tornasse tecnologicamente obsoleto. Além disso, as taxas de juro tendem a descer durante uma recessão, mesmo que não haja um banco central, o que estimula ainda mais a procura de investimento.
Da mesma forma, a actividade industrial pode expandir-se, restaurando os inventários esvaziados pela excessiva contracção da produção. Por outro lado, alguns acontecimentos aleatórios que podem influenciar de maneira decisiva, como grandes inovações ou variações nas colheitas agrícolas, podem ter um efeito assimétrico numa recessão, com os acontecimentos positivos nalguns sectores a terem um maior impacto do que os acontecimentos negativos noutros sectores. No domínio financeiro, a falência dos bancos mais débeis durante uma recessão deixa os sobreviventes com o benefício de uma maior confiança da população, ficando assim preparados para retomar uma actividade rentável.
É muito bem possível que alguns destes factores, mais do que apenas as medidas adoptadas pelos governos e pelas organizações multilaterais, tenham desempenhado um papel importante na actual melhoria económica. A imprevisível psicologia humana também tem a sua influência. Com efeito, estes factores são muito importantes para o panorama da economia e para se avaliar o êxito do programa de recuperação.
Podemos começar pela inversão para terreno positivo dos mercados accionistas observada desde Março deste ano, que tem sido impressionante. Recorrendo aos dados mensais do índice S&P Compósito, a valorização de 38% registada de Março a Setembro foi a segunda maior subida de seis meses desde 1871, tendo sido superada apenas por um ganho de 71% entre Fevereiro e Agosto de 1933, durante a Grande Depressão. Esta retoma é ainda mais notável pelo facto de se seguir à segunda maior queda de sempre de um período de seis meses, uma vez que os preços das acções caíram 38% entre Setembro de 2008 e Março de 2009 (a maior queda de seis meses foi, como podem adivinhar, durante a Grande Depressão, quando o índice perdeu 47% entre Novembro de 1931 e Maio de 1932).
Além disso, esta forte retoma foi também visível em muitos outros países - e no que respeita a uma grande maioria de activos, como os preços do petróleo, do ouro e, nalguns países, do imobilário residencial.
Provavelmente, não será fácil compreender cabalmente as causas desta reviravolta. Há ainda perguntas sem resposta sobre as razões de outras retomas significativas nos mercados (1933, 1982, etc.). Uma vez iniciada, a expansão do mercado pode prosseguir durante algum tempo, como uma espécie de epidemia social, e pode inspirar reconfortantes histórias sobre uma "nova era" que são disseminadas pelo passa-palavra e pelos meios de comunicação social. As próprias histórias podem ajudar a aumentar a envergadura do "boom", tornando-se parte do "feedback" que as sustenta.
Os acordos alcançados nas recentes reuniões do G-20 são uma dessas histórias, pois sugerem uma nova era de cooperação internacional e de profissionalismo económico - uma narrativa que foi provavelmente reforçada pela psicologia da retoma económica e financeira. A história do G-20 adquire um peso particular no mundo em desenvolvimento, uma vez que o reconhecimento internacional do maior papel que o G-20 deu aos países em desenvolvimento é altamente ressonante do ponto de vista psicológico.
Além disso, as histórias sobre os bancos fortemente rentáveis que pagam avultados bónus aos seus executivos também levou as pessoas a pensarem que as coisas não estão assim tão mal no mundo dos negócios. Os protestos irados contra esses lucros e bónus só tendem a aumentar o ritmo de propagação da história.
No entanto, estes "booms" especulativos são intrinsecamente instáveis, à medida que as histórias vão evoluindo no tempo e com novos acontecimentos, cujos efeitos nos mercados são dos mais incertos. Saliente-se que foi uma excessiva expansão especulativa no mercado accionista e no mercado imobiliário que esteve na origem da crise financeira.
É incontestável que os governos e as instituições multilaterais fizeram sérios esforços para restaurarem a confiança. Mas não "fabricaram" uma retoma, apenas tiveram sorte. O G-20 e os governos que instituíram os pacotes de estímulo à economia estão actualmente a viver uma lua-de-mel devido ao aparente sucesso dessas medidas.
A direcção que a - ainda enfraquecida - economia mundial vai tomar a partir daqui é tão incerta quanto a dos mercados especulativos que desempenharam um papel preponderante tanto no desencadear da crise financeira como na retoma. Só poderíamos desejar que a elaboração de uma política económica fosse tão desprovida de ambiguidade quanto, digamos, a engenharia mecânica. Mas não é esse o caso: um conjunto de factores cíclicos naturais, difíceis de apreender, desempenham um papel, da mesma forma que os caprichos da psicologia humana.
Robert J. Shiller é professor de Economia na Universidade de Yale e economista-chefe na MacroMarkets LLC. É co-autor, com George Akerlof, de "Animal Spirits: How Human Psychology Drives the Economy and Why It Matters for Global Capitalism". © Project Syndicate, 2009. www.project-syndicate.org Tradução: Carla Pedro
© Project Syndicate, 2009.
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