Harold James 03 de Fevereiro de 2014 às 20:08

A nova desigualdade

Desde o início, as respostas políticas à crise financeira de 2008 foram coloridas por memórias e interpretações da Grande Depressão. A sabedoria convencional agora defende que o mundo evitou uma repetição da catástrofe entre guerras, sobretudo porque os responsáveis políticos tomaram melhores decisões desta vez. Mas, ainda que haja muito espaço para a auto-congratulação, duas características da recuperação pós-crise lançam uma sombra sobre as celebrações.

Primeiro, apesar da expansão monetária sem precedentes e dos estímulos orçamentais massivos, a recuperação tem sido notavelmente fraca e frágil. Na Zona Euro, a crise da dívida desencadeou uma curva acentuada para a contracção orçamental – e, com isso, um regresso à recessão. Mas, mesmo nos Estados Unidos, onde havia uma abundância inicial de estímulos, a taxa de crescimento de longo prazo parece que deverá manter-se bem abaixo dos níveis pré-crise no futuro próximo.

 

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A recuperação vacilante lembra a recuperação dos anos 30, quando muitos economistas proeminentes, incluindo John Maynard Keynes e o seu principal expoente americano, Alvin Hansen, decidiram que o mundo estava a entrar numa fase de estagnação secular. Na sua visão, o vigor e o dinamismo da Revolução Industrial estavam esgotados, sem nada para os substituir a sustentar o crescimento económico.

 

A segunda ressalva sobre o mundo pós-crise é ainda mais alarmante. Muitos países responderam à Grande Depressão adoptando políticas que visavam a redução das disparidades na riqueza e rendimento. Como resultado, a meio do século XX, a extrema desigualdade social e económica que caracterizou os países industrializados parecia estar a desaparecer.

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Mas, desde 2008, a desigualdade medida, que estava a aumentar mesmo antes da crise financeira, subiu, em grande parte, devido a muitas medidas que são tantas vezes elogiadas por prevenirem outra Grande Depressão. As políticas monetárias não-convencionais impulsionaram um “boom” dos activos, com os preços das acções a dispararem e os preços das propriedades em pólos económicos como Nova Iorque, Londres, Paris, Rio de Janeiro e Xangai a afastarem compradores domésticos.

 

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Com os ricos a tornarem-se mais ricos, as classes médias foram pressionadas por taxas de juro nominais próximas de zero que, em termos reais, eram na verdade negativas. Ao mesmo tempo, os rendimentos da classe trabalhadora foram afectados pelo aumento da concorrência para trabalhos em países com custos laborais mais baixos.

 

Alguns banqueiros centrais gostam de recordar o hino de Winston Churchill pelo heroísmo daqueles que lutaram a decisiva batalha da Grã-Bretanha: "Nunca no campo do conflito humano tanto foi devido por tantos a tão poucos". Mas, aplicado à economia moderna, tal elogio é incómodo na melhor das hipóteses, porque é literalmente verdade: o sistema financeiro foi estabilizado pela acumulação de elevados volumes de dívida por poucos bancos centrais.

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Não é apenas a política monetária que está a ter um impacto de polarização. Os europeus que estão a considerar as políticas de Keynes enfrentam um legado dispendioso de projectos de investimento público passados. Por exemplo, os Jogos Olímpicos de Atenas em 2004 deveriam ter transformado a Grécia numa economia brilhante, dinâmica e moderna. Mas, ainda que os Jogos tenham rendido um sistema de metropolitano para a cidade e um aeroporto razoavelmente moderno, também produziram o abandonado complexo olímpico de Hellinikon e uma montanha de dívidas.

 

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Além disso, as críticas apontam correctamente para o favoritismo e outras formas de corrupção na adjudicação de contratos para estes projectos. Este é mais um caso em países desenvolvidos como a Grécia e Espanha do que em economias em desenvolvimento e emergentes.

 

O lado obscuro do pacote de estímulos pós-crise da China foi discutido no julgamento de Liu Zhijun, que supervisionou o desenvolvimento da rede ferroviária de alta velocidade da China –uma posição que lhe rendeu 374 propriedades, 16 carros e 18 amantes. Quando parecia provável que a sua sentença de morte fosse trocada por pena de prisão, a China irrompeu em protestos.

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Tal indinação com a corrupção é espelhada na agitação popular que está a varrer outras grandes e aparentemente bem-sucedidas economias dos mercados emergentes. Até ao passado Verão, o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, parecia ser o génio atrás de um milagre económico sem precedentes. Ele anunciou um plano para substituir o parque arborizado Gezi na Praça Taksim de Istambul com uma réplica de um quartel de exército da era otomana que iria abrigar um centro comercial, o que provocou enormes protestos populares.

 

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Os grandes eventos de desporto têm sido realizados com recuos particularmente poderosos. A Polónia foi sacudida por um escândalo depois das empresas estrangeiras que ganharam contratos para o campeonato europeu de futebol da UEFA de 2012 obtiveram dinheiro do governo, mas não pagaram aos construtores polacos a quem sub-contrataram o trabalho. No Brasil, os protestos contra o próximo campeonato mundial da FIFA continuam, enquanto os Jogos Olímpicos de Inverno da Rússia em Sochi arriscam tornar-se uma catástrofe de relações públicas.  

 

Em breve, a economia política dos projectos de estímulos keynesianos pode ser altamente problemática, já que os cidadãos comuns, muitas vezes, não têm acesso aos seus benefícios. Para um mundo que ainda está a recuperar do rescaldo da crise de 2008, com as suas revelações chocantes de prevaricações nas indústrias financeira e imobiliária, tais projectos de elevado perfil parecem outro remendo para recompensar uma elite corrupta.

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Mas, há uma distinção crucial: o que está a impulsionar a desigualdade agora não é o capitalismo sem restrições, mas os esforços problemáticos de políticas públicas para estabilizar economias na sequência da crise financeira. A concorrência capitalista corrói os lucros de monopólio, onde os riscos de políticas públicas criam um privilégio entrincheirado. Actualmente, quer com as políticas monetárias expansionistas e o aumento do gasto do Estado, levando a uma repercussão poderosa dos excluídos e dos menos privilegiados, passos seguidos em nome de evitar outra Grande Depressão que podem acabar por exacerbar a polarização social.

 

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Harold James é professor de História na Universidade de Princeton e "senior fellow" do Center for International Governance Innovation (CIGI).

 

Copyright: Project Syndicate, 2014.

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www.project-syndicate.org

Tradução: Raquel Godinho

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