Adolfo Mesquita Nunes 31 de Julho de 2017 às 22:15

A conversa do aproveitamento político

A conversa do aproveitamento político começou muito antes da discussão sobre a lista de vítimas da catástrofe de Pedrógão Grande.

Na verdade, ainda o país assistia, consternado, às consequências daquele incêndio, procurando juntar-se àquela dor, ainda os partidos da oposição não tinham feito outra coisa que não associar-se ao luto, e já se falava, até em editoriais, sobre a necessidade de evitar o aproveitamento político, de deixar as perguntas para depois, de deixar este drama fora do combate político.

 

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A conversa do aproveitamento político surgiu assim antes de qualquer reação partidária, antes mesmo das listas ou não listas e do segredo de justiça e dos critérios oficiais ou não. Surgiu de forma preventiva, subliminar, uma impressão, um desconforto causado a quem começava a perguntar-se, a duvidar de tantas explicações rápidas e erradas.

 

Foi de tal forma assim que quando começámos a perceber as falhas e responsabilidades do Estado nos perguntámos se deveríamos ou não, e como e quando, expressar as nossas perplexidades, chamar o Governo à responsabilidade, quebrando essa impressão geral.

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Mas a dimensão das falhas foi tal que as perguntas não poderiam senão ser feitas: quando, como, porquê, quem?

 

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E foi aí, quando as perguntas se começaram a impor perante a ausência de respostas, que se adensou, até pelo próprio Governo, a conversa do aproveitamento político. O que antes era subliminar passou a ser assumido, uma pressão, um incitamento à autocensura: quem queria saber estava a aproveitar-se.

 

Nessa conversa, qualquer coisa que pudesse obrigar o Governo a explicar-se, a responder, a assumir, tornava-se aproveitamento. A sindicância parlamentar, dever de um Parlamento, tornou-se aproveitamento. A política, no seu sentido puro, tornou-se aproveitamento. Só aos partidos de esquerda eram consentidas perguntas.

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Isto não tocou apenas à oposição, mas chegou aos jornais, que chegaram a ser acusados de publicar "fake news", como se estivessem feitos com teorias da conspiração (a ausência de oposição à esquerda cria esta pressão adicional no jornalismo que critica o Governo: estão feitos com a direita).

 

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O que é que não era aproveitamento, nesta conversa? Deixar o Governo tomar conta do assunto, mostrar consternação, não levantar ondas, aceitar todas as explicações, ouvir os "briefings" à hora certa pela pessoa certa. 

 

Ora, a conversa do aproveitamento, se bem-sucedida, limita a política, comprime o espaço de debate, cerceia a liberdade de imprensa. Nem de propósito, e não é disso que acuso este Governo, realço com vigor, não há censura que não comece com essa desculpa.

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Limitar o debate político para evitar o aproveitamento é o primeiro passo para a degradação da nossa democracia. Se os jornais tivessem sucumbido à conversa do aproveitamento, ensaiada por Governo e deputados, ainda hoje estaríamos sem saber grande parte do sucedido naquelas horas, suas causas e consequências.

 

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Mas deve a despudorada utilização de mortes e dramas humanos para proveitos políticos passar sem contraditório, sem crítica, como se nada fosse?

 

Claro que não. Mas uma coisa é criticar essa despudorada utilização, outra é considerar que qualquer pergunta difícil, dura, que encosta o Governo à sua responsabilidade é um aproveitamento.

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Não me cansarei de criticar todos aqueles deputados da esquerda que, durante quatro anos, utilizaram dramas humanos na área da saúde para seu proveito político, chegando a pronunciar-se sobre casos concretos e responsabilizando diretamente o governo de que fiz parte por mortes. Nessa altura, o despudorado aproveitamento político que hoje tanto os apavora não lhes fez confusão.

 

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Advogado

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico 

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