Contos exemplares: o bar aberto no SNS
O caso do dermatologista do Santa Maria que recebeu 400 mil euros por pequenas cirurgias fora do horário regular gerou o merecido escândalo - este é, afinal, o país em que 500 mil euros (os de Alexandra Reis na TAP) custaram a cabeça de vários governantes. Mas, tão ou mais ilustrativa do que a história do médico, é a reação do representante dos administradores hospitalares. Sobre o risco evidente implícito nos incentivos financeiros para reduzir listas de espera nas cirurgias, Xavier Barreto respondeu assim ao Público: "Se garantirmos que as equipas, em horário laboral normal, estão a produzir, pelo menos, o mesmo ou mais do que produzem na actividade adicional, não vejo que isso seja uma fraude. Se implementarmos todas as medidas preventivas (...) e se garantirmos que eles têm de ser tão produtivos em períodos normais como em períodos adicionais (...) e que não há aqui qualquer tipo de viés, acho que é possível manter este tipo de mecanismo". O leitor atento contou três "ses".
Há aqui dose involuntária de ironia dado que o sistema funciona há anos sem que, em vários hospitais, os "ses" deixassem de o ser. Os "ses" são somados ao argumento de que é melhor isto do que "pagar aos privados" pelas cirurgias em atraso - "os hospitais", argumenta-se, "optam por pagar 55% [adicionais] às suas equipas, ao invés de pagar 100% ao privado". Fica a ideia bizarra de que não há outros gastos na cirurgia - os materiais usados, os medicamentos, a limpeza do bloco, a estrutura hospitalar - além da remuneração de quem a faz, mas esse nem é o ponto. A utilização dos "privados", o anti-Cristo em qualquer debate político sobre Saúde em Portugal, parece ter um propósito de distração. A vontade de não assumir as fragilidades na gestão pública, que Xavier Barreto conhece, é um problema na origem da faturação milionária do dermatologista.
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O SIGIC é um sistema de incentivos para reduzir as listas de espera nas cirurgias e, de caminho, para reter médicos das especialidades cirúrgicas no SNS. Na prática, como mostra o caso do Santa Maria, os incentivos atuais geram efeitos contraproducentes. Um deles ilustra-se assim: um cirurgião com duas operações complexas e longas marcadas num bloco do hospital X realiza a primeira até às 13h; quando se prepara para a segunda, a começar perto das 14h30 (o que significa ocupar o bloco até às 19h), encontra resistências inesperadas. Apesar de serem ainda 14h30, aquele bloco já estava marcado para "produção adicional", a tal que paga mais - a operação é então adiada, para o bloco servir casos mais simples e rentáveis.
Este exemplo, informado, mostra o défice de gestão (com prejuízo para o doente mais grave) num sistema que paga por produção adicional sem controlar primeiro, com rigor, a produção regular. A isto junta-se o facto de ser o serviço que acumula listas de espera - por sua responsabilidade ou por estar subdimensionado - a geri-las em produção adicional, incentivando a fabricação dessas listas (o risco seria menor "se" a operação fosse feita noutro hospital do SNS ou num privado). A cereja no topo do bolo é o facto de os médicos serem responsáveis pela introdução dos códigos relativos à complexidade da intervenção, ligada ao valor a pagar. Mesmo com a presença de um teto - acima do "nível dois" de severidade é precisa autorização - há o risco de inflacionamento da gravidade. E há, por fim, o risco de o Estado pagar pequenas cirurgias que não são necessárias. (Quantas destas operações a sinais e cataratas seriam rejeitadas pelas seguradoras no privado?)
Algumas destas coisas, como o facto de as listas de espera não poderem servir para premiar quem as cria, são evidentes e tornavam o escândalo do dermatologista dos 400 mil euros numa fatalidade - o dele e de outros colegas de especialidades cirúrgicas (oftalmologia, ortopedia) que ganham valores astronómicos. Os números "macro", de resto, sugerem um problema sistémico: a produção adicional cresceu 76% (!) em três anos, um terço das cirurgias são feitas fora do horário normal e há hospitais com mais de 50% da produção neste regime. O "bar aberto", como lhe chamou Adalberto Campos Fernandes na CNN, é ainda mais estranho quando o Estado sabe bem travar incentivos artificiais à procura de cuidados de saúde - é o que fez quando contratualizou no passado as PPP com os privados, com quem negociou anualmente tetos inflexíveis de despesa, baseados na dimensão e nas características da população que esses hospitais serviam. No SNS não é preciso mão firme?
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Esta negligência prolongada - uma das muitas marcas da governação dos últimos anos - tem uma consequência imediata e visível para os contribuintes, ajudando a explicar o descontrolo na despesa com o pessoal na Saúde (só entre entre 2023 e este ano aumentará 33%). Mas há impactos mais discretos, e não menos importantes. É grande a revolta nos hospitais com estes pagamentos milionários, sobretudo nas especialidades não cirúrgicas - algumas, como a medicina interna, são um pilar para qualquer serviço de saúde que sirva uma população cada vez mais envelhecida como a nossa. O debate sobre o SNS deixou há anos de ser sobre "mais dinheiro" - é, cada vez mais, sobre melhor gestão.
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