Alemanha, o país com as maiores bancarrotas do séc. XX
Segundo o economista alemão Albrecht Ritschl, a Alemanha foi o maior transgressor de dívida do séc. XX. Esta afirmação, como muitas outras que constam duma entrevista concedida ao Der Spiegel em Junho 2011 por este professor de História Económica da London School of Economics, causa uma profunda estupefacção a quem a lê.
Como se pode conciliar esta desconhecida realidade histórica com a Alemanha de hoje, arauto incontestado da responsabilidade sagrada dos devedores e da inflexível ortodoxia financeira? É uma boa pergunta, mas primeiro vale a pena relembrar alguns factos em cinco pontos históricos, associando factos desconhecidos do grande público com outros universalmente conhecidos:
- A dívida pós I Guerra Mundial
Como todos se lembram, o Tratado de Paz que fechou em Versalhes a I Guerra Mundial declarou a Alemanha como vencida e culpada da guerra, o que de um ponto de vista estritamente militar, apesar do enorme contributo dos americanos, até era discutível. Pelo tratado ficou igualmente determinado o pagamento de reparações de guerra aos vencedores, que vieram a ser definidos na sequência de um ultimato inglês em 1921. As reparações foram assim estabelecidas em três tranches:
a) Títulos de Dívida A, 12 mil milhões de marcos ouro.
b) Títulos de Dívida B, 38 mil milhões de marcos ouro.
c) Títulos de Dívida C, 82 mil milhões de marcos ouro.
Ainda segundo Ritschl, num artigo publicado na London School of Economics em 2012 ("Reparations, Deficits, and Debt Default: the Great Depression in Germany"), os Títulos A representavam 20% do PIB alemão e somando os B a dívida subia para 100%. Os últimos títulos, que só seriam accionados em determinadas condições, fariam subir a dívida para 260% do PIB. Como a dívida estava expressa em ouro, nem a escapatória da desvalorização poderia ser utilizada.
Apesar de só as duas primeiras tranches serem imediatamente devidas, são conhecidas as afirmações de Keynes de que com este tratado ficavam criadas as condições para uma II Guerra Mundial. A afirmação era, como se viu, premonitória.
- O endividamento externo (1924-1929)
Na sequência da hiperinflação de 1923, motivada por uma política monetária alemã desastrosa, num quadro de grande instabilidade política e de revolta nacional pelas condições impostas pelos Aliados, as autoridades americanas conceberam e fizeram aprovar em 1924 um plano para estabilizar o sistema financeiro alemão. O plano foi promovido por Charles G. Dawes, banqueiro americano, futuro vice-presidente dos Estados Unidos e prémio Nobel da Paz. O Plano Dawes reorganizava o pagamento da dívida e, simultaneamente, facultava apoio financeiro oferecido por um grupo de banqueiros, entre os quais J. P. Morgan. Estes fundos destinavam-se a possibilitar o arranque da economia alemã.
Para dar segurança aos credores americanos, o Plano Dawes determinava que os direitos do financiamento externo tinham precedência sobre a dívida das reparações, ficando esta, portanto, subordinada à dívida externa.
Com esta garantia, os bancos americanos entraram numa espiral de crédito a entidades públicas e privadas alemãs, que por sua vez utilizaram estes recursos para pagar as reparações de guerra. Este movimento traduzia-se numa reciclagem de dívida que levou a Alemanha a construir uma dívida gigante junto do sistema financeiro americano. A balança de pagamentos alemã passou a ficar crónica e altamente deficitária.
- A crise da bolsa americana e a bancarrota alemã (1929-1933)
É igualmente conhecido o que se passou no sistema financeiro norte-americano em 1929. Vale a pena também lembrar o que foi inicialmente a atitude das autoridades americanas face à crise criada por um sistema financeiro à rédea solta:
Andrew Mellon, então secretário do Tesouro nos Estados Unidos, recomendava como forma de resolver a crise, "liquidar o emprego, liquidar as acções, executar as hipotecas dos agricultores e do imobiliário, porque só assim se purgaria a podridão do sistema".
Também se sabe o que se passou a seguir na América e que se veio a projectar rapidamente ao resto do mundo, tendo passado à História como "A Grande Crise".
Cortada das suas fontes de financiamento, a Alemanha cai rapidamente numa profunda recessão. Apesar de os esforços de França para amenizar os efeitos da falta de recursos na Alemanha, os Estados Unidos e a Inglaterra recusaram emprestar dinheiro, porque isso significaria substituírem-se aos bancos na reciclagem da dívida. Com a degradação da situação económica, política e social, o plano de pagamento das reparações de guerra foi cancelado em 1932 e, no ano seguinte, a Alemanha declara a bancarrota total.
O que veio a seguir também é bem conhecido. Uma nação humilhada, numa profunda depressão económica, sem emprego, com as lojas vazias e as fábricas fechadas, mas com uma incomparável capacidade de trabalho e de sofrimento, veio a cair nos cantos sanguinários de vingança e a protagonizar a maior selvajaria e destruição que a Humanidade jamais tinha conhecido.
- O milagre alemão do pós-guerra e o "bail-out" de 1953.
É conhecido o estado em que a Alemanha se encontrava em 1945. Mas desta vez os Estados Unidos não estavam dispostos a permitir que fossem reproduzidos os erros que levaram à II Guerra Mundial, nem reparações de guerra, nem acrescentar crise à crise. Entre várias medidas de apoio, fazendo prova de uma generosidade hoje dramaticamente ausente na União Europeia, os Estados Unidos, além do Plano Marshal, impuseram aos seus aliados o Acordo de Londres de 1953, em que ficava estabelecido imediatamente o corte praticamente para zero da dívida alemã, adiando a resolução final da dívida para uma conferência a realizar-se aquando da reunificação alemã. A Alemanha pode assim reconstruir-se no pós-guerra, esquecendo (para já) as suas dívidas. Depois da bancarrota de 1933, veio o colossal perdão de 1953.
- A conferência que nunca se realizou
É conhecido que a Alemanha, já potência económica global, logrou a sua reunificação em 1989, com a queda do Muro de Berlim. Mas a prometida conferência sobre o Acordo de 1953 acabou por não se realizar nunca. É que no início dos anos 1990 o eixo franco-alemão estava inteiramente empenhado na concretização da moeda única, e Helmut Kohl fez compreender que convencer os alemães a deixar o marco e a falar de dívidas antigas eram assuntos irreconciliáveis. Assim se passou. O único país a reclamar a abertura da conferência foi recentemente a Grécia, com o resultado que se sabe.
FINAL
Este pequeno refrescamento histórico assume uma importância de proporções incompreensíveis numa Europa que, em pleno processo de unificação, foi atingida pelos efeitos de mais uma crise financeira originada nos Estados Unidos. Crise que teve como efeito tornar transparentes as deficiências e as limitações da construção da moeda única europeia.
É incompreensível como se podem ignorar os ensinamentos mais relevantes de como enfrentar uma grande crise financeira, erro que bem entendido os Estados Unidos não cometeram nesta nova grande crise.
É também questionável porque certas páginas da História foram pura e simplesmente apagadas da cultura geral, incluindo o resultado do desprezo sobre a importância da generosidade, como motor do futuro.
É pena, muita pena.
Presidente da APFIPP
Mais lidas