Biodiversidade: o novo imperativo estratégico para empresas que querem prosperar
Mais do que uma obrigação legal ou reputacional, a biodiversidade é hoje uma chave real para a resiliência, a inovação e o propósito das empresas que pretendem prosperar num mundo cada vez mais interdependente.
No contexto do Dia Internacional da Biodiversidade (22 de maio) e dos seis anos da publicação da encíclica “Laudato Si’”
“A perda de biodiversidade é um problema mundial que nenhum país, por mais rico ou poderoso que seja, pode enfrentar sozinho.” — António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas
A biodiversidade deixou de ser um tema periférico reservado ao discurso ambientalista para se tornar um fator central de risco sistémico e, simultaneamente, uma das mais relevantes oportunidades estratégicas para as empresas do século XXI. A aceleração da perda de ecossistemas, a crescente pressão dos investidores, a regulação emergente e a expectativa social em torno do papel do setor privado na regeneração planetária convergem num novo imperativo: integrar a biodiversidade como parte intrínseca das decisões de negócio, não apenas como uma questão de responsabilidade ambiental, mas como um elemento estruturante da resiliência empresarial e do posicionamento competitivo.
No plano político e multilateral, o Quadro Global da Biodiversidade Kunming-Montreal, aprovado na COP15 em dezembro de 2022, estabeleceu um novo rumo para a humanidade. Este acordo histórico delineia um conjunto de metas ambiciosas a alcançar até 2030, incluindo o restauro de pelo menos 30% dos ecossistemas degradados, a proteção efetiva de 30% das zonas terrestres, de água doce e marinhas e a mobilização de, no mínimo, 200 mil milhões de dólares por ano para financiar estas ações. Este financiamento deverá ser assegurado por um esforço combinado entre os setores público e privado, sendo expressamente encorajado o recurso a instrumentos de mercado como os créditos de biodiversidade — mecanismos que atribuem valor económico a ações de conservação e regeneração da natureza, com base em métricas rastreáveis, mensuráveis e verificáveis (Fonte: CBD, 2022).
Estes créditos são unidades voluntárias e transacionáveis, associadas a resultados positivos para a natureza, como a recuperação de espécies, a proteção de habitats ou a regeneração de ecossistemas. Ao contrário dos offsets tradicionais, que compensam danos, os “biocréditos” estão associados a contribuições adicionais e positivas — e por isso serão, cada vez mais, altamente valorizados por investidores e compradores institucionais. Quando integrados em projetos híbridos — como os Créditos de carbono+, recentemente reconhecidos na legislação portuguesa — estes instrumentos geram valor duplo: climático e ecológico (Fonte: IFLR ESG Report 2024) (Fonte: Diário da República, DL 4/2024).
O enquadramento internacional é reforçado por novos instrumentos legislativos ao nível europeu, que visam transpor para a prática os compromissos multilaterais. Um dos mais relevantes é a Lei Europeia do Restauro da Natureza, aprovada no quadro da Estratégia da UE para a Biodiversidade até 2030, e que pretende reverter a perda de biodiversidade e restaurar ecossistemas degradados em toda a União Europeia até 2050, com metas vinculativas para os Estados-Membros:
- Restaurar pelo menos 20% das áreas terrestres e marinhas da UE até 2030;
- Restaurar todos os ecossistemas degradados até 2050 (florestas, zonas húmidas, rios, prados, ecossistemas marinhos, etc.);
- Priorizar as áreas da rede Natura 2000 (rede de áreas protegidas da UE); melhorar indicadores específicos como a biodiversidade dos solos, polinizadores, conectividade de rios e cobertura arbórea.
Ao abrigo desta lei europeia, o Estado-Membro deve apresentar Planos Nacionais de Restauro com medidas concretas e prazos para o seu cumprimento, e monitorizar a sua evolução rumo às metas com base em indicadores científicos e verificáveis, integrando a sua “política de natureza” com outras políticas, como agricultura, pesca e planeamento urbano. Esta lei visa, simultaneamente, reforçar a segurança alimentar, a qualidade da água, a resiliência das paisagens e o bem-estar humano.
Outra peça legislativa central é a Diretiva sobre a Devida Diligência em Sustentabilidade Corporativa (CSDDD), que, embora esteja presentemente em processo de alteração no contexto da simplificação regulatória proposta pela Comissão Europeia (pacote Omnibus), define as bases para um novo regime de responsabilidade empresarial. Esta Diretiva vai obrigar grandes empresas a identificar, prevenir e mitigar impactos adversos sobre os direitos humanos e o ambiente, incluindo a biodiversidade, em todas as suas operações, subsidiárias e cadeias de valor, independentemente da sua localização geográfica. Trata-se de uma mudança estrutural que amplia o alcance da responsabilidade empresarial e consagra o ambiente natural como um elemento jurídico relevante nas decisões de negócio.
Simultaneamente, a entrada em vigor da Diretiva de Reporte de Sustentabilidade Corporativa (CSRD) marca uma nova era na forma como as empresas devem analisar e comunicar os seus impactos. Ao exigir uma análise de dupla materialidade — ou seja, no caso da biodiversidade, a consideração simultânea do impacto da empresa no ambiente e da exposição da empresa aos riscos ecológicos — esta Diretiva torna a biodiversidade um tema incontornável para qualquer organização que pretenda manter acesso a capital, mercados e reputação. As empresas terão de incluir no seu reporte indicadores claros sobre o uso do solo, a pressão sobre habitats, o consumo de recursos naturais e as medidas de mitigação ou regeneração em curso.
Independentemente deste novo contexto regulatório — e do que resultar do processo para a sua simplificação em curso —, as empresas estão perante uma escolha estratégica: resistir à mudança e acumular riscos crescentes ou adotar uma abordagem proativa e transformar a biodiversidade num vetor de inovação, reputação e captação de financiamento. Cada vez mais, a segunda via está a revelar-se não só mais sustentável, mas também mais rentável.
A biodiversidade não é apenas um ativo ambiental: é também uma fonte de inovação transversal. Empresas pioneiras em setores como cosmética, farmacêutica, agroalimentar e biotecnologia estão a desenvolver novos produtos e processos baseados em recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados a ecossistemas intactos. As instituições financeiras estão a estruturar produtos de investimento ligados à conservação, e cadeias de valor regenerativas ganham cada vez mais a confiança dos stakeholders e a preferência entre consumidores conscientes. Neste novo cenário, investir na biodiversidade torna-se uma estratégia de antecipação, diferenciação e criação de valor. A liderança empresarial é convocada, já hoje, para o tema da biodiversidade, e será medida, cada vez mais, pela capacidade de gerar valor regenerativo, não apenas mitigador.
Seis anos após a publicação da encíclica Laudato Si’, que convocou o mundo a uma ecologia integral — onde justiça social, responsabilidade ambiental e visão intergeracional se entrelaçam — torna-se cada vez mais claro que proteger e regenerar a biodiversidade não é apenas uma questão ambiental: é uma afirmação de liderança ética e estratégica num tempo de disrupção ecológica global.
Assim, mais do que uma obrigação legal ou reputacional, a biodiversidade é hoje uma chave real para a resiliência, a inovação e o propósito das empresas que pretendem prosperar num mundo cada vez mais interdependente.
Referências principais:
- CBD Secretariat. Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework. CBD.int
- European Council. Corporate Sustainability Due Diligence Directive — State of Play. (2024)
- Comissão Europeia. Corporate Sustainability Reporting Directive (CSRD). CELEX: 32022L2464
- IFLR (2024). Biodiversity Credit Schemes for the Safeguarding of Nature. ESG Report, Vieira de Almeida.
- Diário da República. Decreto-Lei n.º 4/2024. Portugal, 5 de janeiro de 2024.
- World Economic Forum (2023). Biodiversity Credits: A Guide to Support Early Use with High Integrity.
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