O fim das ações ao portador
Num mundo que não é juridicamente harmonizado, somente a imposição da obrigatoriedade de divulgação do beneficiário efetivo do capital das pessoas coletivas permitirá a pretendida transparência e segurança jurídica.
No passado dia 4 de Maio entrou em vigor a Lei 15/2017 de 3 de Maio que proíbe a emissão de valores mobiliários ao portador e cria um regime transitório destinado à conversão, em nominativos, dos valores mobiliários ao portador em circulação, alterando para o efeito o Código dos Valores Mobiliários e o Código das Sociedades Comerciais.
Na prática o que se pretende é que o emitente de valores mobiliários passe a ter sempre a faculdade de conhecer a identidade dos respetivos titulares para que haja transparência e segurança jurídica.
A conversão dos valores mobiliários ao portador deve ocorrer no prazo de seis meses, de acordo com regulamentação a adotar pelo Governo no prazo de cento e vinte dias, ficando proibida a transmissão dos valores mobiliários em questão e suspenso o direito dos respetivos titulares de participar em distribuição de resultados da empresa caso a conversão não se verifique dentro do prazo estipulado.
A Lei surge na sequência dos projetos de Lei do Bloco de Esquerda e do Partido Socialista e insere-se no âmbito de um conjunto de medidas que têm vindo a ser introduzidas para combater as práticas associadas ao branqueamento de capitais e ao terrorismo financeiro em Portugal.
Surge também no contexto da Diretiva 2015/849, de 20 de Maio, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, ao abrigo da qual os Estados-membros devem tomar medidas para prevenir a utilização abusiva de ações ao portador ou "warrants" sobre ações ao portador.
Não deixando de saudar o desígnio da Lei e o contexto em que surge, esta medida fica aquém do pretendido uma vez que que não impede que o titular de valores mobiliários seja entidade sediada numa jurisdição onde valores mobiliários ao portador continuem a ser permitidos, ou ainda onde seja possível contratar os chamados serviços de "nominee shareholders", ou seja, pessoas singulares ou coletivas que aparecem para o exterior como os acionistas das entidades.
É certo que já existem regras específicas no nosso ordenamento jurídico que vão para além da mera identificação do titular direto dos valores mobiliários. Veja-se, por exemplo, o regime das sociedades cotadas que impõe a divulgação da identificação de toda a cadeia de entidades a quem sejam imputadas participações qualificadas, ou a própria Lei 16/2017 (publicada também no dia 3 de Maio) que veio alargar a obrigatoriedade de registo dos acionistas dos bancos à identificação dos beneficiários efetivos dessas entidades. Mas a maioria das empresas a operar em Portugal não se encontram sujeitas a este tipo de "disclosure".
Assim, afigura-se-nos claro que, num mundo que não é juridicamente harmonizado, somente a imposição da obrigatoriedade de divulgação do beneficiário efetivo do capital das pessoas coletivas permitirá a pretendida transparência e segurança jurídica.
Esta sim será uma medida verdadeiramente eficaz no combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo e que, de resto, estará em linha com a Diretiva acima referida. Com efeito, a Diretiva obriga os Estados-membros a assegurar que as pessoas coletivas constituídas no seu território obtenham e conservem informações suficientes e atualizadas sobre os seus beneficiários efetivos e a criar um registo central de beneficiários efetivos, imposições que não estão ainda transpostas para o ordenamento jurídico português embora o Conselho de Ministros já tenha aprovado um conjunto de propostas de Lei sobre estas matérias.
Este artigo foi redigido ao abrigo do novo acordo ortográfico.
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