A Reserva Federal em negação
A Reserva Federal dos Estados Unidos é uma das organizações governamentais mais poderosas da história mundial. O banco central americano tem controlo sobre a oferta de dólares e, actualmente, exerce grande influência sobre as taxas de juro, nos financiamentos quer a curto quer a longo prazo.
E, embora a Fed seja parcialmente responsável pelas falhas regulatórias que levaram ao quase colapso da economia mundial em 2008-2009, a reforma pós-crise têm-lhe dado ainda mais autoridade e mais responsabilidade para supervisionar o sistema financeiro.
Este é um resultado preocupante, porque os responsáveis da Fed parecem ter regressado aos instrumentos anteriores à crise de 2008, ignorando as preocupações em relação ao comportamento perigoso do sector financeiro - mesmo quando estes receios são expressos pelos membros do Comité Financeiro do Senado dos Estados Unidos. Isto não é apenas lamentável; é também perigoso, porque a posição política da Fed é muito mais precária do que a sua liderança parece perceber.
Em muitos países, as pessoas à direita do espectro político proporcionam um bastião de apoio ao banco central. No norte da Europa, por exemplo, a independência do Banco Central Europeu é vista como essencial para a estabilidade dos preços – e os políticos de direita tipicamente atribuem uma maior prioridade a este objectivo.
A situação é muito diferente nos Estados Unidos. Aqui, a direita, representada pelo Partido Republicano, tem sido suspeita da Fed, reflectindo a sua oposição a um governo federal poderoso, bem como a nostalgia em relação aos dias do padrão-ouro (particularmente a versão operada antes da criação da Fed em 1913). A Fed, como actua actualmente, tem sido protegida pela esquerda (o Partido Democrático).
Por exemplo, recentemente, testemunhei numa audição do Comité de Serviços Financeiros sobre a legislação proposta pelos republicanos que iria impor maiores limitações à Fed quer em relação à política monetária quer em relação à regulação. Os Democratas do Congresso tinham uma posição oposta e convidaram-me para a discussão, onde expliquei que as limitações propostas iriam, na minha opinião, dificultar muito a eficácia da Fed- incluindo a sua capacidade para ajudar a economia a regressar ao pleno emprego e evitar que o sistema financeiro fique fora de controlo novamente.
Nas actuais circunstâncias, os democratas são fortes o suficiente – com o controlo do Senado e da presidência – para afastar esses "assaltos". Consequentemente, os responsáveis da Fed e da Casa Branca parecem confiantes de que não irá acontecer nada de dramático que possa prejudicar a independência da Fed.
Eu não estou tão certo. O principal problema é que a Fed não se moveu com entusiasmo para implementar totalmente as disposições fundamentais da reforma financeira de Dodd-Frank, que foram aprovadas em 2010.
Por exemplo, a legislação de Dodd-Frank especifica que todas as grandes instituições financeiras devem elaborar "testamentos" – especificando como pode ser permitido que entrem em falência, livres de qualquer tipo de resgate, se ficarem novamente insolventes.
Criar este "testamento" não é uma opção; é uma exigência da lei. Contudo, num discurso recente que analisou o panorama da reforma financeira, o vice-presidente da Fed, Stanley Fischer, ignorou a exigência quase completamente.
Fischer parece preferir confiar nos poderes de resolução do Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), que tem competência para assumir o controlo de instituições financeiras em falência, com a expectativa de que imponha perdas aos credores de forma a não causar pânico a nível mundial. (Faço parte do Comité Consultivo de resolução sistémica do FDIC, mas não sou responsável pelos planos da agência ou pelas suas acções potenciais.)
Infelizmente, como construídos actualmente, estes poderes de resolução não deverão funcionar. Não se aplicam além das fronteiras dos Estados Unidos, não há capacidade de absorção de perdas de capital suficiente nas grandes e complexas instituições financeiras e a estrutura de financiamento das grandes "holdings" bancárias continua precária.
Os responsáveis da Fed enfatizam que os grandes bancos se financiam a si próprios com mais capital agora do que faziam no passado. Mas o Global Capital Index construído por Thomas Hoenig, vice-presidente da FDIC, indica que os maiores bancos dos Estados Unidos são ainda financiados em 95% por dívida. Com tanta alavancagem, não precisam de muito para criar receio de insolvência.
Contudo, apesar das repetidas expressões de preocupação de responsáveis – incluindo dos democratas do Senado – a Fed continua a ignorar estes problemas profundos. Se, no seu mais recente discurso, Fischer pareceu deixar de lado estes receios – assegurando à sua audiência que há muito valor social em continuar a ter empresas financeiras extremamente grandes que operam com tão pouco capital próprio (e, assim, um grande grau de alavancagem).
Isso é mais do que desapontante. É profundamente perigoso para a economia. E põe em risco a capacidade futura da Fed em agir conforme necessário.
Em entrevistas recentes, incluindo à New Yorker, a presidente da Fed Janet Yellen indicou, pelo menos, preocupações gerais sobre o comportamento do sector financeiro e a vulnerabilidade dos grandes bancos. Mas a menos que a Fed actue em relação a estes receios – incluindo através da implementação da exigência de que as grandes instituições financeiras adoptem "testamentos" – a sua independência vai ficar sob ainda maior pressão.
Simon Johnson é professor da Sloan School of Management do MIT e co-autor do livro "White House Burning: The Founding Fathers, Our National Debt, And Why It Matters To You".
Direitos de Autor: Project Syndicate, 2014.
Tradução: Raquel Godinho
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