Supremo reconhece contrato de trabalho a estafeta da Glovo

Supremo Tribunal de Justiça, que já este mês tinha decidido que a nova regra se aplica aos estafetas mais antigos, em processos contra a Uber, considera em nova decisão que a Glovo não conseguiu afastar os indícios que mostram que o trabalho é subordinado.
Glovo
Miguel Barreira
Catarina Almeida Pereira 29 de Maio de 2025 às 20:01

É a segunda decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) sobre o trabalho nas plataformas digitais e volta a ser unânime e favorável ao Ministério Público, que atua em nome dos estafetas. 

Desta vez, numa decisão que contraria os argumentos da Glovo, o STJ decidiu o reconhecimento de um contrato de trabalho que tinha sido negado pelo tribunal de primeira instância e pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Estes tribunais consideraram que a Glovo tinha conseguido ilidir – ou seja, afastar – a presunção de laboralidade, ou seja, a ideia de que o trabalho é subordinado.

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Em comunicado, o STJ refere que reconheceu esta quarta-feira "a existência, no caso concreto, de uma relação de trabalho entre a plataforma digital Glovo e um estafeta".

Neste processo, "já em fase anterior se tinha concluído que se verificavam cinco dos seis elementos que indiciam uma relação de trabalho". confirma o STJ.

"O recurso pretendia que o STJ decidisse se a Glovo apresentava factos suficientes para refutar a existência de contrato de trabalho. Depois de analisar os factos, o STJ entendeu que a Glovo não logrou provar o contrário e, por isso, reconheceu a existência de uma relação de trabalho entre a empresa e o estafeta em questão".

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Os tribunais têm tomado decisões contraditórias sobre o reconhecimento de contrato de trabalho a estafetas das plataformas digitais. De tal forma, que o caso chegou ao Supremo, sendo as decisões aguardadas com expectativa pelas partes. 

Numa primeira decisão, ainda este mês, relacionada com estafetas da Uber, o STJ tinha decidido que mesmo que a (falsa) prestação de serviços tenha começado antes da entrada em vigor das novas regras para a presunção de laboralidade (em maio de 2023), e desde que a relação de trabalho tenha prosseguido além dessa data, os tribunais devem aplicar as novas regras, que são mais adaptadas às características do trabalho dos estafetas, tal como o Negócios noticiou na semana passada.

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No acórdão, o STJ reconhece que, embora no caso concreto se encontrassem verificados cinco dos seis indícios da presunção de laboralidade (quando bastam apenas dois), é necessária uma abordagem "holística" de todos os factos e circunstâncias.

O acórdão sustenta que é relevante a "forte inserção do estafeta na organização algorítmica" da ré, a Glovo, "encontrando-se no mesmo, inclusivamente (…) abrangido por um seguro de acidentes pessoais".

Os conselheiros relevam o facto de serem geridas pela Glovo a plataforma digital e as aplicações associadas "as quais – enquanto intermediário tecnológico no processo de transmissão dos dados relativos aos pedidos formulados pelo utilizador-cliente – são os instrumentos de trabalho essenciais do estafeta".

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"Toda a sua atividade está condicionada pela efetiva ligação/conexão a estas ferramentas digitais, pelo que, neste contexto, não assume relevo decisivo o facto de o estafeta escolher a área em que trabalha, poder recusar serviços e conectar-se/desconectar-se da aplicação sempre que o entenda, sem ter de cumprir qualquer horário predefinido, nem de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade", lê-se no resumo do acórdão.


Desvalorizando a inexistência de um contrato de trabalho como elemento "central", ou os multiplicadores que permitem alterar o valor base do serviço, o acórdão reconhece, no entanto, que "o facto de o estafeta pagar à ré uma taxa pela utilização da plataforma contrasta especialmente com a matriz típica de uma relação de trabalho subordinado", embora acrescente que tal não é decisivo.

Referindo que "o estafeta não ter qualquer obrigação de resultado para com a contraparte", bem como "a circunstância de ele não assumir algum risco financeiro ou económico" o acórdão conclui "que a ré não logrou ilidir a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital".

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Contactada pelo Negócios, uma porta-voz da Glovo sublinha que "cada caso tem aspetos diferentes", mas não esclarece se há lugar a recurso.

"Continuaremos a defender a legalidade do nosso modelo operacional em relação à decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Esta decisão analisou um caso em particular e não é de todo uma decisão uniformizadora", refere, referindo que há 300 sentenças favoráveis em primeira instância, e que os acórdãos de segunda instância são "maioritariamente a favor da Glovo".

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Uber e Glovo não explicam se vão recorrer   As duas decisões do Supremo Tribunal de Justiça sobre os estafetas admitem recurso para o Tribunal Constitucional? "Desde que tenha sido suscitada durante o processo alguma questão de inconstitucionalidade de uma norma e essa norma tenha constituído fundamento da decisão, em abstrato, pode haver lugar a recurso para o Tribunal Constitucional", explica em resposta ao Negócios António Garcia Pereira, advogado especializado em Direito do Trabalho. Contudo, nem a Glovo nem a Uber esclarecem se recorreram ou vão recorrer das decisões. Em causa está o novo artigo do Código do Trabalho que estabelece uma presunção de laboralidade específica para que os tribunais possam avaliar se em causa está, ou não, uma falsa prestação de serviços, reconhecendo o contrato de trabalho sem termo ao estafeta (ou a outro profissional). A ministra do Trabalho, Rosário Palma Ramalho, anunciou há cerca de um ano a intenção de rever a norma, mas o processo não chegou a ser aprofundado em concertação social.  
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