O surdo-mudo foi morto por um mal-entendido
Para ilustrar o raciocínio, transcrevi uma série de títulos da imprensa que, apesar de reais, beiravam a estupidez. Esse material veio de um livro francês que não recordo o nome. Mas lá na crónica original constava tudo, o nome do autor, o do livro, até da editora.
Arthur Xexéo, um dos cronistas brasileiros de que mais gosto, em tempos cunhou uma expressão curiosa: fita-banana. No mundo real, uma fita-banana é uma fita-cola com dupla face. Nos textos de Xexéo, uma fita-banana é um assunto que não tem fim, daqueles que quando parecem encerrados ressurgem do nada.
Eu tenho uma crónica fita-banana. Explico: há mais de 20 anos, publiquei um texto no Diário de Notícias sobre os equívocos factuais ou de linguagem que os jornais (de qualquer país) cometem no dia a dia.
Para ilustrar o raciocínio, transcrevi uma série de títulos da imprensa que, apesar de reais, beiravam a estupidez. Esse material veio de um livro francês que não recordo o nome. Mas lá na crónica original constava tudo, o nome do autor, o do livro, até da editora.
A coisa viralizou. Passadas algumas semanas, deparei-me com imensas páginas da internet com parte da minha crónica (os tais títulos de jornais engraçados). Em nenhum lugar constava o nome do francês. Em todas eu era apresentado como o autor da pesquisa.
Mais um tempo e os “links” já estavam na ordem de centenas. Depois descobri um texto publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, assinado pelo grande escritor Mário Prata, em que os títulos apareciam, dando a entender que eu os havia enviado para ele (coisa que não fiz).
Os anos se passaram e eu estava a assistir um programa do Jô Soares quando o gordo disse ter recebido um e-mail de um tal de Edson Athayde, de Portugal, com uma série de títulos de jornais. A coisa deve ter feito sucesso pois a rábula repetiu-se em mais duas ocasiões. Eu nunca enviei e-mail nenhum para o Jô.
Já me deparei com essa lista a mim atribuída em várias páginas de Facebook e até do Pinterest. Trata-se de uma bola de neve virtual que eu não consigo parar. O que eu hei de fazer?
Bem, no mínimo, publicar aqui uma parte das tais frases. Não são minhas, mas são boas:
“Ela foi morta pelo seu assassino.”
“Ferido no joelho, ele perdeu a cabeça.”
“Os antigos prisioneiros terão a alegria de se reencontrar para lembrar os anos de sofrimento.”
“A polícia e a justiça são as duas mãos de um mesmo braço.”
“O tribunal, após breve deliberação, foi condenado a um mês de prisão.”
“Quatro hectares de trigo foram queimados. A princípio trata-se de um incêndio.”
“O velho, antes de apertar o pescoço da sua mulher até à morte, suicidou-se.”
“No corredor do hospital psiquiátrico, os doentes corriam como loucos.”
“Ela contraiu a doença na época em que ainda estava viva.”
“A conferência sobre a prisão-de-ventre foi seguida de um farto almoço.”
“À chegada da polícia, o cadáver encontrava-se rigorosamente imóvel.”
“As circunstâncias da morte do chefe de iluminação permanecem obscuras.”
“O presidente de honra é um jovem septuagenário de 81 anos.”
“É uma bela obra que parecia exalar toda a fria tristeza da estepe gelada. Foi executada com um calor magistral.”
“A água corrente foi instalada no cemitério, para satisfação dos habitantes.”
“Apesar da meteorologia estar em greve, o tempo esfriou ontem intensamente.”
“Os sete artistas compõem um trio de talento.”
“A vítima foi estrangulada a golpes de facão.”
“O surdo-mudo foi morto por um mal-entendido.”
“Os nossos leitores de certeza nos desculparão por este erro indesculpável.”
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