Habemus Trump
No que a nós, Europa, nos toca, e para além dos referidos episódios sobre a NATO e a Rússia, Trump confirmou ser o mais hostil presidente americano da História face ao projeto europeu.
Esta é a realidade incontornável: temos e teremos Trump por aí, embora não saibamos exatamente até quando. A sua presença constante na vida internacional pode ter criado a ideia de que já passou muito tempo desde a sua entrada em funções, mas a verdade é que ele só vai a meio do primeiro mandato - e estamos longe de poder excluir que possa vir a ser eleito para um segundo.
Se olharmos estes dois anos à luz das expectativas que havia sobre uma administração Trump, na altura da sua eleição, acho que há duas notícias, de sinal contrário, que se impõem. A primeira é boa: Trump não provocou nenhuma guerra, como muitos temiam, como, por exemplo, se chegou a pensar que poderia ser tentado a fazer no caso da Coreia do Norte. "So far so good!" A má notícia é óbvia: confirmou-se o previsto tropismo de Trump para induzir, com brutalidade verbal e simplismo de atitudes, uma elevada quebra de confiança à escala global, afastando aliados e amigos, espalhando sinais erráticos sobre aquilo que se pode vir a esperar da América.
Se pensarmos nos primeiros dias de Trump na Casa Branca, há que lembrar as palavras desdenhosas que teve para com a NATO, somadas aos sinais que dava de pretender uma espécie de "aliança estratégica" com a Rússia. A realidade obrigou Trump a um recuo neste domínio, confirmando as sanções à Rússia pela anexação da Crimeia e mantendo, no essencial, os compromissos transatlânticos, embora com uma forte retórica de exigência de cumprimento do "burden sharing". Trump não recuou, contudo, na denúncia dos tratados internacionais de comércio, em curso de negociação ou em efetividade, em que a América se tinha empenhado - da parceria transatlântica à parceria transpacífico, passando pela NAFTA. No acordo do clima, a sua atitude não trouxe surpresas e, no tocante às Nações Unidas, foi quase tão longe quanto era expectável que fosse.
No que a nós, Europa, nos toca, e para além dos referidos episódios sobre a NATO e a Rússia, Trump confirmou ser o mais hostil presidente americano da História face ao projeto europeu. Entusiasta natural do Brexit, não "deu a mão" ao Reino Unido, que viu a "special relationship" desaparecer do mapa da retórica bilateral. Contudo, nenhum aliado terá sido mais agredido do que a Alemanha, quase colocado no rol dos "inimigos", manifestamente por ser o titular da maior riqueza concorrente. Com a França, Trump teve uma efémera lua de mel com um iludido Macron, que pensou ter encontrado na "nova América" um parceiro para consagrar a sua liderança europeia. Só para o leste europeu enviou mensagens de simpatia.
No Médio Oriente, as coisas ficaram "claras": a América quer "desengajar-se" da região, mas não sabe como. Desde logo porque qualquer solução tem de comportar garantias totais a Israel. Depois, porque a obsessão com o Irão, que levou Washington a afastar-se do acordo obtido com os europeus para controlo das ambições nucleares de Teerão, obriga a dar à Arábia Saudita uma liderança regional que tem todas as condições para poder resultar numa guerra. Mas foi na Síria que a fragilidade americana, face à Rússia, ficou patente, ao ter de deixar Assad no poder. Não há hoje uma "exit strategy" americana para a região.
Na Coreia, Trump terá tido o seu maior sucesso, com Kim Jong-un a baixar a bravata, a troco de um reconhecimento como interlocutor, embora quase tudo esteja ainda por fazer. Porém, a política asiática de Trump tem a China como preocupação central: Pequim é o inimigo a prazo, enquanto Moscovo é apenas um poder adversarial, incómodo mas menor. Desprotegidos comercialmente pela América e sem garantias firmes, os amigos asiáticos de Washington, com o Japão à frente, têm hoje angústias estratégicas inéditas.
Resta o aspeto moral. Moral? Ao afirmar uma agenda internacional que não prioriza a defesa da liberdade e de quantos lutam por ela pelo mundo, Trump dá alento a regimes e forças autoritárias que têm a democracia, os direitos humanos e as regras do Estado de direito na cave das suas prioridades. Sabemos como a América, na História, foi muitas vezes cínica, por "realpolitik", no cuidado com esses valores pelo mundo. Mas nunca os negou, o que está agora a acontecer com Trump. Essa é já, e até ver, a sua pior herança.
Embaixador
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