O muro da gratidão
O ano de 2016 foi o ano dos novos muros, depois do esforço que o mundo fez para os deitar abaixo. Durante 365 dias, Donald Trump, de cabelo laranja e cara bolachuda, lembrando um dos três porquinhos (ou mesmo os três), perorou desvairadamente sobre as qualidades do muro que vai construir, vangloriando-se das suas qualificações como construtor civil. Prometeu-nos que será de pedras, de paus e de palha, e do que mais vier à rede, o importante é que deixe o lobo mau do outro lado.
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Enquanto isso, os ingleses e os franceses, de quem esperávamos mais, não lhe ficaram atrás, com a ideia peregrina de um muro em Calais, destinado a impedir os imigrantes clandestinos de saltarem para cima dos camiões que fazem a travessia pelo túnel do canal da Mancha. Já então a Bulgária e a Hungria haviam transformado fronteiras em muros de exclusão, alimentados pela ilusão de que no século XXI se circunscreve o perigo com arame farpado.
Mas, nos últimos dias do ano dos muros, dei por acaso de caras com um muro diferente, o projeto da construção de um muro de gratidão - o "The Wall of Answered Prayer" (um muro de orações que tiveram resposta) é uma ideia de Richard Gamble, antigo capelão do Leicester City Football Club, que pelo dinamismo que conseguiu imprimir à sua visão, aprendeu no futebol a mover multidões. A proposta é criar, num local bem visível de uma auto-estrada de grande movimento, um marco arquitetónico formado por um milhão de tijolos, cada um correspondendo a uma oração a que Jesus deu resposta.
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Não gosto muito da ideia de um Deus que às vezes ouve e outras aparentemente não escuta, que acolhe os pedidos de uns e faz ouvidos de mercador a outros, nem tão-pouco de um Deus bombeiro que intervém para salvar alguém, deixando sofrer o vizinho, mas gosto da ideia de um muro feito de histórias. De histórias de pessoas que se viraram para fora de si mesmas, que procuraram apoio, inspiração e força para vencer as adversidades, que tiveram a coragem e a humildade de pedir e acreditar. Mas, sobretudo, de gente capaz de agradecer, de enumerar bênçãos em lugar de colocar o enfoque nas lamentações.
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E histórias não vão faltar. Nesta iniciativa de "crowdfunding" cada voluntário envia o seu depoimento (por escrito ou num vídeo), que fica armazenado numa gigantesca base de dados - um milhão de histórias com final feliz -, e compra um tijolo que simbolicamente o representa. Paga por ele o preço que entender, ou nada, se em consciência não o puder fazer. Em 2018, poderá confirmar, na versão 3D do monumento, onde é que a sua peça vai encaixar, bastando clicar no seu tijolo para aceder à informação que lhe corresponde. "Um dia, um dos seus bisnetos pode apontar para o muro e dizer: 'Aquele tijolo é a oração da minha bisavó', e contar a história que lhe corresponde", diz Richard Gamble. E se não é isto a eternidade, o que é?
Agora é preciso dar forma a este marco de esperança. Em associação com o Royal Institute of British Architects (RIBA), foi lançado um concurso internacional de design, que ainda está a decorrer. No desafio aos arquitetos de todo o mundo, pede-se uma verdadeira obra de arte que inspire quem passa por ele ou quem o visita, física ou digitalmente. Pede-se que rompa com a tradição, interpele e surpreenda. A mim já me surpreendeu.
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http://thewall.org.uk
Jornalista
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Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico
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