Crise e bodes expiatórios
Não há distribuição de máscaras nas cadeias apesar de múltiplos surtos e centenas de infetados? Sem problema, em breve estarão todos vacinados. Morrem portugueses desnecessariamente? A vacina está ao virar da esquina.
Historicamente quando a concentração de riqueza é excessivamente elevada, a pobreza se começa a generalizar na sociedade e as crises económicas se sucedem sem que pareça haver solução no quadro social vigente surgem políticos radicais que em vez de apresentar soluções preferem ganhar proeminência criando bodes expiatórios atirando culpas próprias para ombros inocentes.
A estes políticos tem-se convencionado na atualidade designar por populistas ou em alternativa extrema-direita. No passado os bodes expiatórios por excelência eram os judeus e os ciganos. Depois o grupo passou a incluir os comunistas. Na Alemanha populista de Hitler esses três grupos foram sistematicamente assassinados em campos de extermínio.
A deriva populista cresce hoje na Europa e em Portugal, onde um partido de extrema-direita condiciona já o Governo de uma das Regiões Autónomas portuguesas. André Ventura fala do "problema cigano" com a mesma desenvoltura com que Hitler falava do "Problema Judeu". Ambos em nome de uma liberdade de expressão que rapidamente se transforma na necessidade de matar.
Mas os bodes expiatórios alargaram-se, incluindo hoje o conjunto das minorias étnicas portuguesas (negros, ciganos, etc.) e os comunistas. Estes grupos ameaçados contudo não se defendem mutuamente. O PCP só vê racismo contra imigrantes (sem se aperceber que a maioria dos negros e ciganos não são imigrantes mas portugueses, e muitos há muitos séculos). Assim ficam todos mais desprotegidos. Lembra um célebre poema.
Nos últimos dias a barragem mediática tem sido insuportável. Um bode expiatório surge como saco de pancada. O Serviço Nacional de Saúde sucumbe depois de anos sem investimento? Está-se mesmo a ver que a culpa é do Congresso. O Governo não comprou vacinas para a gripe em número suficiente, pois a culpa é do Congresso. O Governo não pretende apoiar a restauração ao mesmo tempo que a asfixia, só pode ser culpa do Congresso. Os hospitais estão esgotados porque o Governo não preparou a segunda vaga? Naturalmente por causa do Congresso. Morrem centenas de portugueses porque o Governo não apoia nem fiscaliza os lares privados, certamente a culpa é do Congresso.
E atenção: o Congresso ainda não se realizou. Quando se realizar será com certeza o fim do mundo e a hora do Juízo Final.
A nível internacional o grande bode expiatório é hoje a China. Faltam máscaras? A culpa é da China. Não temos ventiladores? A China. Quarentena? Não embarcamos em políticas radicais. Rastreamos com uma APP quando é impossível fazê-lo com recursos humanos? Não, isso é totalitarismo, preferimos não rastrear e deixar espalhar a doença. Usamos máscara? Não, que isso dá uma falsa sensação de segurança, só países comunistas insistem nesse erro.
A par com a estratégia dos bodes expiatórios vem a venda de falsas ilusões. Não há camas nos cuidados intensivos? Não faz mal vem aí a vacina. Não há distribuição de máscaras nas cadeias apesar de múltiplos surtos e centenas de infetados? Sem problema, em breve estarão todos vacinados. Morrem portugueses desnecessariamente? A vacina está ao virar da esquina.
A vacina transformou-se na grande justificação para a inação, para o deixar morrer. Uma espécie de Nossa Senhora de Fátima menos eficaz.
A venda de ilusões e a política do bode expiatório, as duas faces da mesma moeda, parecem ter submergido a capacidade de raciocínio de muitos comentadores televisivos, a ponderação e o bom senso que devem prevalecer, a coragem para criticar quando necessário, a obrigação de analisar os factos e dar uma opinião isenta.
A Europa está em decadência e esta crise sanitária veio agudizar a crise. Que soluções para Portugal? Eis a questão que vale a pena discutir. Talvez até fazer um Congresso.
Economista
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