Vamos falar da Europa e do mundo?
O que está em jogo é a capacidade de a UE de se afirmar como um ator global autónomo, resiliente e relevante num mundo cada vez mais multipolar e volátil.
Se um extraterrestre tivesse acompanhado a recente campanha eleitoral portuguesa — com mais de 30 debates realizados (pelo menos 30 debates televisivos e um radiofónico) e muitas horas de tempo de antena — dificilmente adivinharia que Portugal é membro da União Europeia, e que essa união entrou oficialmente na “era do rearmamento”. Este movimento está a mobilizar cerca de 800 mil milhões de euros para defesa nos próximos quatro anos, a maior parte proveniente do aumento das despesas nacionais dos Estados-membros em matéria de defesa e segurança (incluindo, naturalmente, Portugal). E não foi por falta de debates: o extraterrestre ia, aliás, concluir que Portugal realiza, em média, mais debates televisivos entre os candidatos às legislativas do que a maioria dos países europeus.
A Europa encontra-se hoje numa encruzilhada. Realizaram-se recentemente eleições importantes (como as legislativas na Roménia ou presidenciais na Polónia), num mundo marcado por múltiplos conflitos às portas da UE, por uma crescente incerteza geopolítica e tecnológica, bem como por ameaças que afetam diretamente os interesses europeus. Apesar disso, a campanha eleitoral portuguesa foi dominada, do início ao fim, pelo tema da Spinumviva, a empresa de consultoria fundada pelo primeiro-ministro. Este fenómeno não é exclusivo de Portugal — em grande parte da Europa há uma tendência crónica para dar prioridade quase exclusiva aos temas internos, e até já amplamente esclarecidos e debatidos, negligenciando questões externas fundamentais que moldam o nosso futuro.
Durante a campanha, ficou claro que jornalistas, comentadores e até académicos com presença no espaço público, optaram por manter o foco quase exclusivo naquele que consideravam o tema com maior potencial para embaraçar o primeiro-ministro. Com isso, deixaram de lado os grandes temas estruturantes do nosso futuro coletivo — talvez com a curta exceção da discussão energética causada pelo apagão. Mesmo na noite eleitoral, já com os resultados conhecidos — que mostravam que os portugueses talvez não estivessem assim tão incomodados com a controvérsia da Spinumviva — alguns comentadores insistiam ainda em dar destaque ao mesmo tópico.
Entretanto, pouco ou nada se ouviu durante a campanha sobre temas fundamentais como autonomia económica europeia, política de defesa e segurança comum, soberania tecnológica (inteligência artificial, cibersegurança, energia), diplomacia económica ou política internacional.
Paradoxalmente, os Presidentes Donald Trump e Vladimir Putin poderão estar a fazer mais pela unidade europeia do que qualquer outro líder desde Robert Schuman, Jean Monnet e Konrad Adenauer. Nesse sentido, o atual contexto global configura uma oportunidade única para que a União Europeia se afirme como um espaço de liberdade, tolerância e prosperidade económica — mas sobre isso pouco ou nada se ouviu.
O que está em jogo é a capacidade de a UE de se afirmar como um ator global autónomo, resiliente e relevante num mundo cada vez mais multipolar e volátil. A autonomia económica não é apenas uma questão de independência face a potências externas, mas um pilar para garantir que as decisões económicas fundamentais tomadas em função dos interesses estratégicos dos cidadãos europeus, e não ditadas por dependências externas em setores críticos, como as cadeias de produção, a energia ou os recursos tecnológicos. Ao mesmo tempo, a defesa e a segurança comuns tornaram-se urgentes, numa altura em que os EUA, tradicional garante da segurança europeia, demonstram sinais de retração estratégica, exigindo que a Europa assuma maiores responsabilidades pela sua proteção coletiva. Neste cenário, a soberania tecnológica ganha uma centralidade inegável: quem dominar a IA, proteger as suas infraestruturas digitais e garantir o acesso a energia limpa e segura terá uma vantagem competitiva e geopolítica determinante. Finalmente, a diplomacia económica e a política externa são os instrumentos através dos quais a UE pode promover os seus valores e interesses, assegurar parcerias estratégicas, aceder a mercados fundamentais e responder de forma coordenada aos grandes desafios globais, como as alterações climáticas, as migrações ou os conflitos internacionais. Ignorar estas dimensões nas discussões públicas e nos debates políticos nacionais é comprometer o futuro da Europa como espaço de prosperidade, liberdade e segurança.
Acredito que o atual contexto global oferece uma oportunidade singular para que a União Europeia se afirme como um espaço de liberdade, tolerância e prosperidade económica. Neste cenário, as universidades europeias podem desempenhar um papel crucial — não apenas ao fomentar o debate sobre temas essenciais, mas também ao propor soluções concretas que permitam à Europa conquistar o seu futuro.
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