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Mário Melo Rocha
21 de Abril de 2008 às 13:59

O pecado original

O Tratado de Lisboa, que deu à chamada Costa Oeste da Europa uma visibilidade inopinada, vai ser ratificado na próxima quarta-feira. Uma vez mais, os habitantes da dita Costa Oeste, também chamados portugueses, vão ficar a leste da coisa. Nos últimos dias

Entrevistas, depoimentos, debates, colóquios e palestras têm-se multiplicado como cogumelos para que se não note o tom artificial do “Sim”. O próprio secretário de Estado Manuel Lobo Antunes que sobre ser inteligente tem revelado um notável bom-senso, tem estado na primeira linha destes procedimentos “legitimadores”. Não se trata de qualquer confusão. Sei bem da legitimidade jurídica e da legitimidade formal democrática da ratificação por via parlamentar. Os procedimentos “legitimadores” de que falo são outros – são todos os que sentem a falta do pai e a ele se pretendem substituir em vista da justificação da sua ausência. Esses debates, ao invés do que querem fazer crer, não têm sido grande coisa. Pouca gente (“poucos mas bons”, dizia um membro do PE em Lisboa), poucas e previsíveis perguntas (questões de circulação e mobilidade das pessoas e pouco mais), relativamente pouco dinheiro afectado para os eventos (“estamos a fazer os possíveis com os meios que temos”, reconhece Lobo Antunes). Mas sobretudo um sentimento generalizado de que o dito Tratado passa completamente ao lado da vida das pessoas. Ora é aqui que os equívocos se geram. Dizer que a população tem de se interessar e de ter a iniciativa é, mais do que um pleonasmo, um autêntico truísmo. Dizer que o texto é um dado adquirido, é outro. Dizer que não é uma prioridade da vida das pessoas, sobre ser ainda outro, é contraditório com a “obrigatoriedade” das pessoas se interessarem. Justificar a falta de interesse com idêntica falta de interesse dos restantes europeus é uma completa falácia. Por maior falta de interesse que outros europeus tenham pelo actual texto, nada se compara com a anomia que sempre esteve presente por cá quando se discutiram os assuntos europeus. A causa é simples: ao contrário do que sucedeu com outros povos, nunca foi dada aos portugueses a oportunidade de se pronunciarem sobre nada destes assuntos. Nunca e nada, foram os presentes que os sucessivos governos (e até, pelo menos, dois Presidentes da República) deram aos cidadãos eleitores. O medo atávico, os truques e as mentiras ( a realização de debates em cima da ratificação justificada por “dificuldades de agenda”) e as mudanças de opinião de quem representa hoje voz “oficiosa” da governação nas questões europeias estão na base do bloqueio assinalado. Quem no passado defendeu o referendo não pode, sem mais, e, portanto, com notável incoerência, vir agora dizer que quem se informou fez muito bem e quem não se informou que se informasse. Por mais vontade política que houvesse em mobilizar as pessoas para os debates e afins, por maior voluntarismo posto em prática em vista do esclarecimento dos cidadãos ou, simplesmente, do sucesso formal das iniciativas e por mais doses de um extraordinário lirismo de quem defende a continuação dos debates após a ratificação do Tratado, nunca um debate, dez debates ou cem debates substituem uma consulta em referendo. Nunca. E, portanto, vale sim a pena em continuar a dizê-lo. Por uma razão muito simples: porque a construção europeia não se esgota na quarta-feira e hão-de existir momentos em que, mais uma vez, o problema vai colocar-se. Vale a pena continuar a dizê-lo, inconformadamente, porque é pedagogia democrática e é precaver o futuro. Quem é verdadeiramente europeísta e não apenas europeísta de ocasião ou, funcionalizando as convicções, europeísta de profissão, sabe que a construção europeia algum dia há-de ser legitimada em Portugal. Pode demorar algum tempo. Mas algum dia será. E nesse dia será muito feio vir dizer que sempre se defendeu o referendo, mesmo quando se disse que o povo, se quisesse, que se tivesse ido informar. O pecado original português chama-se ausência de consulta popular destas questões. Todos os desinteresses são sequelas deste pecado original e todas as piruetas são possíveis porque o pecado original abriu túneis por onde se pode escapulir o que se julgava ser uma só convicção que fosse.

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