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O enriquecimento ilícito de Martins

Sempre que se atravessa um período de crise, renascem os ímpetos purificadores e justicialistas. O mais recente episódio do projecto de lei sobre o "enriquecimento ilícito", sensatamente chumbado pela maioria parlamentar...

1. Era de esperar.

Sempre que se atravessa um período de crise, renascem os ímpetos purificadores e justicialistas. O mais recente episódio do projecto de lei sobre o "enriquecimento ilícito", sensatamente chumbado pela maioria parlamentar, é um alerta para o perigo de se ceder à tentação de transpor os sentimentos populistas (de esquerda ou de direita) para a malha legal. Contra os políticos, os presidentes, os gestores, os ricos e os doutores, marchar, marchar! Poderá ser um refrão muito popular nas feiras, mas da classe dirigente espera-se algo mais que uma colagem aos desígnios mais primários de certas franjas da população.

Se recuarmos um pouco no tempo, até meados dos anos 90, lembrar-nos-emos que, à época, a Assembleia da República produziu um bom pacote de diplomas com o propósito de alargar o regime de incompatibilidades dos deputados e, em geral, dos detentores de cargos públicos. Nos anos que se seguiram, a malha foi progressivamente apertando, estendendo-se aos institutos públicos e às empresas com participação estatal, aos seus dirigentes e às práticas de contratação. A máquina fiscal reforçou significativamente o seu arsenal bélico, nalguns casos para lá do admissível. Aparentemente, só a regulação bancária não dispunha dos meios de intervenção necessários e suficientes.

Sem prejuízo das preocupações de transparência e probidade que devem nortear a causa pública, é inegável que a gestão das organizações onde o Estado é maioritário se transformou num exercício intrincado e moroso face aos inúmeros constrangimentos legais a que foram sendo progressivamente sujeitas. Do mesmo modo que, no plano das incompatibilidades e afins, a malha existente apresenta um sem-número de incongruências. Por isso, um deputado está impedido de dar aulas numa universidade pública mas não numa privada (nem em qualquer cargo de natureza privada), enquanto um gestor público não pode sequer ser administrador do seu condomínio, entre muitas outras preciosidades.

A pequena história que vou contar é a de um agente de mercado sem incompatibilidades, nem escrita organizada. O seu único receio é a presunção de ilicitude do seu enriquecimento.

2. O Martins é arrumador de automóveis em Lisboa, perto de um tribunal. Tem 56 anos, uma pensão por invalidez (pouco visível) de mil euros e gosta de ler. A crise apanhou desprevenido o orçamento familiar e o Martins, numa tentativa de equilibrar o barco, decidiu-se a atacar o mercado do estacionamento de proximidade. Não foi fácil. Apesar de habitar no bairro, teve de romper barreiras de entrada e conquistar o seu território e a sua janela temporal no negócio de rua. Veste bem, tem boas maneiras e presta um serviço de interesse público, como eu próprio tive ocasião de comprovar.

Há um par de semanas, fui convocado para depor, enquanto testemunha, num processo antigo, cuja existência desconhecia por completo e para o qual o meu depoimento dificilmente terá alguma relevância. Adiante. Chegado ao local, que conheço bem de outras incarnações, deparo-me com o habitual problema do estacionamento. À falta de parque público e de lugares legais, desencadeei o plano B - procurar um poiso semi-legal que não cause problemas à circulação.

Quando julgava tê-lo encontrado, o Martins aparece e alerta-me: "Olhe que esse lugar é perigoso. Aconselho-o a pôr o carro acolá." O "acolá" era um lugar tão ou mais irregular que o primeiro, mas, perante a segurança de Martins - "Não se preocupe, eles aí não multam" -, confiei e dei-lhe o euro do costume.

Chegado ao tribunal, sou interpelado por um funcionário judicial de tipo gingão, perguntando-me se o meu nome era aquele que ele supunha. "Ah, então é assim: a sessão foi adiada e não pudemos preveni-lo. Vai ter de cá voltar no dia y, às x horas. Quer um atestado?". Por uns instantes pensei que estava no meio de um filme em que o arrumador e o oficial tinham trocado de papéis. Dez minutos depois, de regresso à rua, olho instintivamente para o lugar de onde o Martins me demovera de estacionar. Estava lá um carro parado, de rodas bloqueadas e fita amarela, cujo condutor não recorrera aos serviços do Martins. Quanto ao meu, encontrei-o são e salvo.

Economista

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