A ameaça bilateral do comércio livre
O sistema comercial baseado em normas que foi desenvolvido pelo GATT e pela OMC foi acatado por praticamente toda a comunidade global. E constituiu um roteiro eficaz para as ex-economias de planeamento central, facilitando a sua integração no mercado mundial.
A Ronda de Doha das conversações comerciais globais parece ter morrido este ano [2012], praticamente sem um gemido. Se bem que uma pequena parte do projecto possa ser salva, a realidade é que se trata de um fracasso único na história das negociações comerciais multilaterais, que transformaram a economia global desde a Segunda Guerra Mundial.
Muitas das sete anteriores rondas de negociações – incluindo a Ronda do Uruguai, que resultou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995 como sucessora do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT) – demoraram anos a concluir, mas nenhuma morreu devido a negligência ou a desinteresse. A actual indiferença é particularmente – se bem que não exclusivamente – evidente nos Estados Unidos. O presidente Barack Obama manteve-se em silêncio sobre o assunto na sua campanha com vista à reeleição e na sua primeira campanha também mal pronunciou uma palavra sobre esta questão. É de nos questionarmos se aquilo que está em jogo é de facto compreendido plenamente nalgumas capitais.
As negociações multilaterais sobre comércio que foram bem sucedidas moldaram de forma significativa o mundo em que vivemos e melhoraram também substancialmente as vidas de milhões de pessoas. Entre 1960 e 1990, apenas uma em cada cinco pessoas vivia numa sociedade economicamente aberta; hoje, nove em cada dez vive nessas circunstâncias.
O sistema comercial baseado em normas que foi desenvolvido pelo GATT e pela OMC foi acatado por praticamente toda a comunidade global. E constituiu um roteiro eficaz para as ex-economias de planeamento central, facilitando a sua integração no mercado mundial.
Inicialmente, a "globalização" era uma palavra suja para alguns indivíduos. Contudo, mesmo por parte de quem se lhe opunha, o seu valor para os países mais pobres acabou por ser reconhecido, uma vez que ajudou mais de mil milhões de pessoas na Ásia a saírem de uma situação de pobreza abjecta. Apesar de haver ainda muito mais a fazer por África e por algumas regiões da América Latina, a Ronda de Doha pretendia ajudar a criar acesso de mercado (e, consequentemente, oportunidades) a muitas mais pessoas no mundo em desenvolvimento.
A essência do sistema multilateral consite em dois princípios: não discriminação e tratamento nacional. O primeiro é descrito, no léxico dos negociadores comerciais, como o princípio da "nação mais favorecida", que procura essencialmente assegurar que os benefícios do comércio facultados a um país são facultados a todos. O segundo exige que os Estados-membros dêem aos parceiros comerciais, dentro das fronteiras nacionais, o mesmo tratamento que é dado aos seus cidadãos.
O princípio da não discriminação garantiu que o comércio global não se convertia num "prato de esparguete" de acordos comerciais bilaterais preferenciais. Além disso, uma estrutura multilateral para as negociações comerciais conferiu aos Estados menos fortes condições mais equilibradas do que aquelas com que se deparariam se fossem obrigados a negociar bilateralmente com países como a China ou EUA ou blocos como a União Europeia.
Mas, nos últimos anos temos vindo a assistir a uma crescente corrida a acordos bilaterais por parte dos principais países e blocos comerciais. Aparentemente, isso consumiu praticamente toda a sua atenção. A OMC foi marginalizada e mesmo aquilo que já tinha sido conseguido durante a incompleta Ronda de Doha não parece "ter pernas" para se transformar num acordo final, isto num futuro previsível.
Os danos à credibilidade da OMC – em tempos aclamada como o maior progresso em matéria de governação global desde o inspirado período do pós-guerra de criação de instituições – poderão vir a revelar-se duradouros. Pior ainda, poderão ter um sério impacto não só no comércio mas também nos relacionamentos políticos mais em geral.
Uma das grandes conquistas da OMC foi o chamado Mecanismos de Resolução de Diferendos. Este órgão independente tem tido imenso sucesso, providenciando ao mundo um eficaz sistema quasi-judicial de resolução de disputas entre parceiros comerciais. Mas a continuação deste sucesso depende, em última instância, da credibilidade da própria OMC, pelo que irá inevitavelmente sofrer danos colaterais com um fracasso das negociações multilaterais.
Com efeito, a actual corrida aos acordos comerciais bilaterais tem-se feito acompanhar por um aumento do proteccionismo. A título de exemplo, houve 424 novas medidas desta natureza na UE desde 2008. Além disso, as tarifas não discriminatórias da União Europeia são plenamente aplicáveis a apenas nove parceiros comerciais. Todos os outros têm um tratamento "excepcional".
Em seguida, não tenhamos dúvidas, teremos a perspective de um acordo bilateral de comércio livre entre a UE e os Estados Unidos. Um tratado UE-Japão está já na forja, bem como uma "Parceria Trans-Pacífico" destinada a liberalizar o comércio entre os EUA e as principais economias asiáticas e latino-americanas. Se algum deles for em frente, o que duvido, uma grande parte do comércio mundial será realizada no âmbito de uma estrutura discriminatória.
Há quem reconheça os riscos. Em Maio de 2011, eu e Jagdish Bhagwati, da Universidade de Columbia, co-presidimos a um Grupo de Alto Nível criado pelos chefes de governo do Reino Unido, Alemanha, Turquia e Indonésia na tentativa de fazer avançar o processo multilateral. Os nossos patrocinadores acolheram bem as recomendações que fizemos, mas esse esforço – e outros semelhantes – não ganharam balanço, deixando todos os países em passo acelerado rumo a um mundo pleno de incertezas e riscos.
Ainda não é demasiado tarde para inverter a onda, aparentemente inexorável, do bilateralismo. Mas a única forma de isso ser feito é prosseguindo com as negociações da OMC. Mesmo que a Ronda de Doha não possa ser concluída, haverá outros caminhos, como a implementação daquilo que já foi acordado. Uma outra alternativa poderá ser avançar com negociações multilaterais entre os países que assim o desejem, em áreas específicas, como os serviços, com outros membros da OMC a poderem aderir mais tarde.
Mas se quisermos seguir em frente em vez de regressarmos a tempos anteriores, e mais perigosos, então os Estados Unidos, muito em particular, terão de reassumir um papel mais construtivo no multilateralismo. Os EUA terão de liderar novamente, tal como o fizeram no passado. E agora devem fazê-lo com a China ao seu lado.
© Project Syndicate, 2012.
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Tradução: Carla Pedro
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