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Bruce Springsteen: A longa marcha

“Born to Run”, lançado em 1975, foi um êxito. A voz de uma geração. Reflexo de uma década repleta de contradições. Algo do disco está na empolgante autobiografia de Bruce Springsteen.

16 de Outubro de 2016 às 11:00

Há quatro décadas, quando lançou a canção que o colocou no centro do rock, "Born to Run", Bruce Springsteen já era a voz da América que nascia ao som das sirenes que chamavam os trabalhadores para as fábricas. Era uma América de todos os sonhos, especialmente o da mobilidade social, que estava a ruir e a desintegrar-se face a uma realidade que iria sucumbir à fogueira das vaidades que Tom Wolfe descreveria de forma fascinante. Springsteen, filho da New Jersey proletária, não se reconhecia apenas no "Saturday Night Fever" que John Travolta mostrava como a noite de todas as fugas face ao trabalho pouco sedutor das cadeias de produção legadas por Henry Ford. E que podia ser a solução para o tédio geral. O rock de Springsteen era poderoso, musculado, feito de suor e lágrimas. E de alguma esperança.

Por essa altura, o cantor deparava-se com um desafio: os seus dois primeiros álbuns, "Greetings from Asbury Park, NJ" e "The Wild, the Innocent and the E-Street Shuffle" tinham fracassado nas vendas. Mas "Born to Run" tornar-se-ia um êxito. A voz de uma geração. As rádios, poderosos meios da altura para divulgação de discos, procuravam o disco que não existia. Springsteen cantava a canção apenas em concertos. O tema era um hino à fuga, cheio de referências culturais que os jovens trabalhadores reconheciam imediatamente. O músico e a canção eram reflexos de uma década repleta de contradições, algumas herdadas dos tumultuosos anos 60. 1975 seria um ano determinante para Springsteen.

Bruce Springsteen: A longa marcha

A vitalidade artística no meio do caos

O rapaz tinha, no entanto, uma paixão: a música. Acabaria por ir parar a Asbury Park. Na altura, toda a cidade sofria de desemprego crónico. Em 1970, a violência urbana entre a polícia e a comunidade negra tornou-se uma constante. Tudo começava a ser decadente. Mas em Asbury Park, no meio do caos, crescia a vitalidade artística. Nos bares, cirandavam músicos como Danny Federici, Clarence Clemons ou Steven van Zandt, numa comunidade inter-racial que haveria de confluir na E-Street Band de Springsteen. Todos estavam fartos da pop melancólica dos Bee Gees ou dos Chicago, que dominavam os "tops" de vendas de discos.

Springsteen começou a criar um imaginário que tinha tudo que ver com a "working class" que se sentia cercada. A inflação e o desemprego tinham criado a estagflação. O mundo industrial desaparecia. E esta classe sentia isso mais do que ninguém na América. Nas linhas que abrem a canção "Born to Run", o cantor usa uma das suas metáforas favoritas: o automóvel como meio de fuga dos becos sem saída e desapontamentos, com que os jovens "blue-collars" se deparavam na altura. O sonho americano deveria estar algures. A canção transpirava autenticidade. Mas, nessa época, Springsteen enfrentava um conflito jurídico com o seu então empresário. E, por isso, entre "Born to Run" e os grandes álbuns que se lhe seguiram, "Darkness on the Edge of Town" e "The River", esteve dois anos sem poder editar.

A autobiografia está repleta de reflexões. Na parte final da obra, Springsteen escreve mesmo que: "Lutei toda a minha vida porque queria escutar e conhecer toda a história, a minha história, a nossa história, e compreender o máximo que pudesse. Queria saber, para me poder libertar das suas mais dolorosas influências, das suas forças malévolas, para celebrar e honrar a sua beleza, o seu poder, e poder contá-la bem aos meus amigos, à minha família e a vocês." Springsteen relembra os anos de adolescência, mas não entra em pormenores "cor-de-rosa", que normalmente polvilham outras autobiografias. E isso reflecte muito sobre ele. Ele conta o passado, não tenta torná-lo numa história comovente ou picante. A sua vida de "sex, drugs and rock'n'roll" é contada de forma contida, porque faz parte da história. E não porque poderia ser a zona empolgante de tudo o que conta. O que sobra é a alegria de estar em palco, algo que transpira das páginas, em concertos de duas, três ou quatro horas. Porque o rock não tem um relógio com início e fim.

A ética trabalhadora, a "culpa" muito católica, encontra-se também por estas páginas. Porque fazem parte integrante do universo "blue collar" de Springsteen. Fala da depressão que o afectou por alturas de "Born in the USA", de 1984, quando se tornou numa estrela global. Desesperado, chamou o seu empresário, Jon Landau, o antigo jornalista que escrevera que tinha visto o "futuro do rock'n'roll" e ele chamava-se Springsteen. Este aconselhou-lhe ajuda profissional. O mundo subterrâneo da alma do músico foi então confrontado com a luz da medicação. "Exposto defronte de milhares, sempre me senti perfeitamente seguro", escreve. "E é por isso que não se conseguem ver livres de mim", acrescenta. Foi isso que o levou sempre a cantar, de forma desafiadora, que: "I believe in the promised land." Não deixa de ser curioso que a alcunha pela qual é conhecido, "The Boss", está ausente destas páginas, porque ele a detesta. Isso acaba por ser um sinal de que aqui não há sensacionalismo. Há apenas a história de um jovem suburbano que cresceu no meio de uma América industrial em decadência. E sempre cantou sobre isso. E sobre a terra prometida que era difícil de alcançar.

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