Já agora, também quero sinalizar a minha virtude
Sobre a parte do despacho que mais polémica gerou - as medidas a levar a cabo pelas escolas para protecção dos alunos em processo de transição de género -, devo dizer sou contra o afã dirigista do Estado.
A maior parte das pessoas que vi deplorarem o famoso despacho do Governo sobre a "autodeterminação da identidade e expressão de género" fê-lo com uma tal urgência, como se fosse a última barreira entre a barbárie e a civilização, a muralha de aço que defende "as nossas crianças" - incluindo as minhas, presumo -, que eu próprio não consegui ler o diploma sem ser a pensar nos meus filhos e nas minhas próprias noções morais. Se neste assunto anda tudo a sinalizar a sua virtude, como agora se diz, deixem-me então sinalizar a minha.
Tenho dois filhos. Um está em idade escolar, outra para lá caminha. O meu filho frequenta a escola que a mãe dele e eu escolhemos, porque somos a favor da liberdade de ensino e temos o privilégio de a poder exercer. É uma escola privada e católica. O que eu espero dessa escola, bem como de qualquer outra que os meus filhos venham a frequentar, é que, pela palavra e pelo exemplo, criem um ambiente em que os alunos valorizem o amor ao próximo e o princípio da não discriminação.
Sobre a parte do despacho que mais polémica gerou - as medidas a levar a cabo pelas escolas para protecção dos alunos em processo de transição de género -, devo dizer sou contra o afã dirigista do Estado, que gosta de lançar um manto de regulamentação sobre todos os aspectos da vida das escolas privadas, como se fossem públicas. Dito isto, se na escola do meu filho houvesse um ou mais casos de alunos naquela situação - a lei só permite a transição de género a partir dos 16 anos -, o que eu gostaria também é que essa escola, por sua iniciativa e independentemente da imposição do Estado, tratasse de os proteger, com pessoas preparadas e medidas proporcionais, em acordo com os próprios alunos e os seus encarregados de educação. Incluindo, sim, no que respeita ao acesso a casas de banho e balneários. Parece-me a coisa mais cristã que se pode fazer.
Dir-me-ão que estou refém da "ideologia de género". Na verdade, aqui o que eu quero é não estar refém de qualquer ideologia. Nesta matéria, só peço que as pessoas se relacionem com base em valores não ideológicos: a sensatez, a compaixão, a empatia com os mais frágeis (convém não desprezar o que se sabe sobre o sofrimento das pessoas transexuais, das suas famílias, as taxas de suicídio, etc.).
Bem sei que por todo o despacho pairam aquelas teorias absurdas que dizem que o género é uma construção social. Mas essas teorias são absurdas porque é óbvio que o género é um dado biológico. Ora, se o género é um dado biológico, parece-me suficientemente forte para que não haja por aí muita gente corroída pela dúvida quanto à sua identidade. Se uma mulher se sente mulher e um homem se sente homem, não é porque uns tipos lhe dizem que podem ser o que quiserem que eles se vão passar a sentir do género oposto. Aliás, se tivesse de apostar, diria que os jovens de que se tem falado (casos raríssimos) não se sentem transexuais porque lhes leram o Foucault no berço.
Se do despacho resultasse a liberdade de qualquer aluno escolher a casa de banho ou o balneário que bem entendesse, eu estaria contra essa parte. Isso seria um experimentalismo social inadmissível, aproveitando o sofrimento de uma pequena minoria. Mas, lendo a norma em causa, no contexto de todo o despacho e da lei que ele quer concretizar, é mesmo muito difícil dizer que é isso que lá está. De resto, se o Governo assim o diz, só temos de estar satisfeitos. Porque aqui o Governo é a "interpretação autêntica" - e pelos vistos a interpretação autêntica está (ou foi forçada a estar) do lado da razoabilidade.
O verdadeiro problema do despacho é outro: supostamente o diploma serviria para densificar a lei, mas é quase tão vago quanto ela, logo relativamente ao conteúdo da formação que deve ser dada a professores e alunos para promoção da não discriminação. É a esse conteúdo que devemos estar atentos, até porque, do que se tem já visto, as escolas não têm meios para aquela formação e começam a habituar-se a delegá-la em organizações externas, que fogem ao controlo democrático e ao da própria comunidade escolar. Devíamos estar a pensar no que não está no despacho, e lá devia estar; não no que lá não devia estar, e que de facto lá não está.
Advogado
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico
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