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A traição do software

Quando, em cima das burocráticas e absurdas imposições do código, um Tribunal de Contas demora meses a apor um visto (o Ministério da Educação foi, aliás, uma das vítimas desta tramitação kafkiana, no processo forçado de mudança de software), não se podem esperar melhorias no funcionamento da máquina pública.

 

1 À direita ou à esquerda, a função governativa tem hoje um grau de exigência que os políticos do século passado desconheciam. Nesse tempo, o escrutínio mediático era curto, as regras administrativas menos constrangedoras e as tecnoestruturas ministeriais robustas e sérias. Por boas e más razões, os governantes estão hoje expostos a tais restrições que poucos passariam no crivo da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CRESAP), se de competências de gestão se tratasse. Ora, são sobretudo estas que os eleitores do presente retêm.

Olhemos para os sistemas mais críticos da esfera estatal - a Educação, a Justiça e a Saúde. Opções políticas à parte, o que permanecerá na opinião pública sobre a actuação dos ministros é o balanço dos acertos e desacertos na gestão dos seus aparelhos. Tal como já acontecera em 2004 (com Maria João Seabra), em idênticas circunstâncias de mudança de fornecedor de software, a balbúrdia na colocação de professores do secundário ficará como a tatuagem política da acção do ministro. As guerras com a Fenprof, as ameaças de destruição à bomba da 5 de Outubro e o estrabismo na gestão dos programas educativos passarão rapidamente ao esquecimento.

Na Justiça, mais do que a personalidade incomum da ministra ou as tecnicidades da reforma do sistema judiciário – que pouco ou nada vimos rebatidas pelos agentes interessados –, os falhanços do software ficarão para sempre como a sua cruz. Por contraste, na Saúde, onde o traquejo de gestão do seu titular fez dele um CEO em vez de um mentor político, os suportes organizacionais e lógicos não sofreram brechas visíveis.

O caso dos vistos dourados é outra falha de gestão. Não colhe o argumento de que a ninguém pode ser imputada a responsabilidade por actos cometidos por terceiros. Aos primeiros fumos (que sabemos agora terem existido) de irregularidades, os ministros responsáveis deveriam ter agido de pronto, como qualquer bom decisor de uma organização pública ou privada.

2 Existe uma coisa infernal chamada Código dos Contratos Públicos (CCP). 473 artigos e seis anexos, supostamente de base comunitária, bloqueiam o funcionamento da Administração Pública. No seu preâmbulo, lê-se "o CCP prossegue o objectivo de simplificação da tramitação contratual através da aposta nas tecnologias de informação" e não se acredita. A espessura bíblica da peça não encontra paralelo em nenhum país da União Europeia.

Mas nem tudo são más notícias. O CCP tem duas óbvias externalidades positivas - é fonte de emprego nas sociedades de advocacia e de inspiração transcendental nas entidades inspectivas do Estado. Quando, em cima das burocráticas e absurdas imposições do código, um Tribunal de Contas demora meses a apor um visto (o Ministério da Educação foi, aliás, uma das vítimas desta tramitação kafkiana, no processo forçado de mudança de software), não se podem esperar melhorias no funcionamento da máquina pública. Uns dirão que só assim se impedem situações fraudulentas, coisa que, como se vê, nem uma sharia pós-moderna conseguiria erradicar. Outros, que tudo não passa de uma trama bem urdida, para que se demonstre a lentidão e ineficácia da coisa pública, como alguns dos argumentos utilizados a propósito da privatização da TAP parecem evidenciar.

3 Acabou-se o tempo dos governantes exclusivamente "políticos". A míngua de altos quadros públicos experientes e capazes, a par das limitações burocrático-administrativas introduzidas por essa figura angélica chamada "legislador", não permitem que os ministros reservem para si funções eminentemente inspiracionais, delegando o resto, o tangível, a intendências debilitadas e desmotivadas. Têm de compenetrar-se que os seus cargos exigem gestão de recursos, monitorização de projectos e controlo de resultados. Nada será como dantes.

Economista. Professor do ISEG/ULisboa 

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