Marques Mendes: “Governo é um misto de Sócrates e de Guterres. Tem o pior dos dois mundos”
As habituais notas da semana de Marques Mendes, no seu espaço de comentário na SIC. O comentador fala sobre o coronavírus, os juízes sob suspeita no Tribunal da Relação; O futebol na mira do fisco; o julgamento de Sócrates e as primárias nos EUA.
CORONAVÍRUS
- Finalmente a epidemia chegou a Portugal. A maior preocupação é no Norte:
Segundo: o que há neste momento é aquilo a que os especialistas chamam um "cluster", um aglomerado de casos que têm entre si uma relação de tempo e de espaço. De tempo, porque as infectações surgiram no período de incubação da doença. De espaço, porque as transmissões ocorreram em contexto laboral e familiar.
Terceiro: neste momento estamos ainda em fase de contenção – conter o vírus dentro do ambiente familiar e hospitalar. Evitar que o vírus passe para a comunidade. Daí as medidas ontem anunciadas pela Ministra da Saúde.
- Entretanto, há uma questão que todos colocam: quando e como é que esta epidemia vai acabar? Ninguém sabe. Esta é a incerteza das incertezas. Até porque ainda não há nenhuma vacina. E a incerteza é que gera medo. E a incerteza e o medo paralisam as pessoas e paralisam a economia. Mesmo assim o caminho a seguir é sempre o mesmo: confiar nas autoridades de saúde, seguir as precauções recomendadas e evitar o pânico.
- Ocorreu anteontem um Conselho de Ministros da Saúde da UE. Ao que apurei, há duas conclusões a tirar: tensão e crispação.
Segundo: uma certa crispação entre duas visões: uma visão comum europeia de intervenção – onde se destacou a posição de Portugal – e uma visão mais nacionalista, protagonizada pela Alemanha e pela França. Prevaleceu a ideia que a Europa tem de agir de forma unida e coordenada.
Em consequência, houve duas decisões importantes: por um lado, foi decidido fazer compras conjuntas, ao nível europeu, de todos os equipamentos de protecção (máscaras, óculos, batas, luvas, etc.); por outro lado, foi deliberado que todo o material informativo sobre a doença será igual para todos os países da Europa.
- As consequências económicas e políticas também são sérias:
Na política também pode haver efeitos sérios. Na China, o regime está em dificuldade e pode endurecer posições; em Itália, o problema pode gerar o crescimento dos populismos; nos EUA, a epidemia pode contaminar as eleições presidenciais. Nenhum país está imune. Já se considera mesmo que, a seguir ao atentado de 11 de Setembro e à crise de 2008, o coronavírus é o terceiro grande problema deste século.
JUÍZES SOB SUSPEITA (TRIBUNAL DA RELAÇÃO)
- Num caso gravíssimo, dois factos relevantes: primeiro, a demissão do Tribunal da Relação. Era uma demissão inevitável. Fica a sensação de que saiu empurrado e não por iniciativa própria. Segundo: a decisão do C.S.M. de instaurar processos disciplinares a três juízes. Uma decisão exemplar. Rápida, firme e unânime.
- Porquê este escândalo? Na minha opinião, por três razões essenciais:
Segundo: o défice de escrutínio. Juízes e militares foram desde sempre os sectores do Estado menos escrutinados. Daí as opacidades, os facilitismos, os amiguismos, a falta de transparência.
Finalmente, a justiça é um mundo muito fechado, muito formal e muito conservador
- Ministro da Justiça – Toda a vida tivemos juristas como Ministros da Justiça. Mas porquê? Muitos Ministros da Saúde não são médicos. Por que é que um Ministro da Justiça não é um gestor? Por que é que há-de ser sempre um jurista? Esta visão conservadora, formal e fechada, só faz mal à justiça.
- Conselho Superior da Magistratura – É o órgão de gestão dos juízes. São 17 elementos. Oito são obrigatoriamente juízes. Mas os demais nove – designados pela AR e pelo PR – podem não ser juristas. Podiam ser gestores, sociólogos, especialistas de outras áreas. Mas não são. É preciso mudar o paradigma.
- Finalmente, o futuro. A partir de agora, vai começar a "caça ao juiz". É um novo desporto nacional. A tentativa de encontrar mais um juiz que tenha tido uma falha. Se houver casos graves, é bom que sejam denunciados. Mas atenção: não se pode generalizar. A esmagadora maioria dos juízes são pessoas sérias, íntegras e competentes. Não são nem um bando de corruptos nem um conjunto de incompetentes. Não podemos entrar em populismos e em exageros.
O FUTEBOL NA MIRA DO FISCO
- Esta semana foi desencadeada uma grande operação do Fisco e do MP junto de vários grandes clubes de futebol. Objectivo: investigar eventuais fugas aos impostos. Por que é que esta iniciativa é importante?
Depois, porque a justiça portuguesa é normalmente muito permissiva com os clubes de futebol. Se houver uma suspeita em relação a um político ou a um empresário, a justiça é muito pronta a intervir. E bem. Se se tratar do mundo do futebol, a justiça é muito branda a tolerante. E mal. Ora, a questão é esta: não há que inventar culpados, crimes ou criminosos. Mas já é tempo de olhar para o mundo do futebol com outros olhos. Os clubes de futebol não são um mundo à parte. Não são Estados dentro do Estado. É tempo de deixarem de ser "vacas sagradas".
- E, já agora, não é apenas o Fisco e a Justiça que têm de mudar de atitude em relação aos clubes e dirigentes do futebol. Começa também a ser tempo de a generalidade dos portugueses mudarem o seu comportamento. Se um político prevarica, os portugueses indignam-se. Se um juiz falha, os cidadãos censuram. Por que é que esta mesma indignação não se vira contra os clubes e os dirigentes do futebol quando eles actuam à margem da lei, da ética e da decência? É tempo de exigir verdade, clareza e transparência também no mundo do futebol.
SÓCRATES VAI A JULGAMENTO?
- Se fossem os portugueses a decidir, não tenho dúvidas de que o ex-PM iria a julgamento. Depois lá estaria o tribunal para, em função das provas, o condenar ou absolver. Seria tudo mais claro e transparente. Mas, como não são os portugueses a decidir, teremos que aguardar mais uns meses pela decisão do juiz de instrução. É assim que deve ser.
- Esta é a questão jurídica. Uma questão que se resolverá dentro do tribunal. Mas há uma outra questão: a questão política. As consequências deste processo na imagem da política e na imagem da justiça. As ondas de choque podem ser brutais. Vejamos, de forma objectiva:
Quanto à justiça – Se Sócrates for condenado, a justiça sai fortalecida. Reganha confiança e credibilidade. Tem uma grande vitória. Se Sócrates for ilibado ou absolvido, a justiça sairá de rastos. Perdida e descredibilizada. Terão que rolar cabeças. Não vai ficar pedra sobre pedra.
- A decisão final é jurídica e só jurídica. É assim que deve ser. A justiça faz-se para servir a lei e não a opinião pública. Mas num processo com estas características é bom que estejamos preparados para as suas consequências políticas. É inevitável e objectivo. Não há volta a dar.
MARCELO NÃO QUER CRISES
- Num dos discursos mais marcantes da sua presidência, Marcelo, fez dois avisos: primeiro, que não quer crises políticas; depois, que o Governo deve criar condições estabilidade para governar. Entretanto, em entrevista ao Expresso, Siza Vieira diz que é preciso uma reflexão à esquerda para tentar encontrar uma nova geringonça. Para começo de conversa, eu diria:
- Não vai haver qualquer crise política no próximo ano e meio;
- Nem provavelmente vai haver nova geringonça nos próximos tempos.
- Porquê então tudo isto? Porque o Governo está numa tripla encruzilhada:
Segunda: corrigir agora este defeito de fabrico é bastante difícil. Como recorda o director do Expresso, João Vieira Pereira, para fazer uma nova geringonça os ex-parceiros do BE e do PCP vão exigir um preço alto. Uma factura pesada.
Terceira: mas, se não corrigir este defeito de fabrico, a situação vai agravar-se – com a saída de Centeno, com o abrandamento económico, com a presidência da UE, com as autárquicas e no fim com a sucessão de Costa no PS.
- A agravar esta situação, o Governo é, neste momento, um misto de Sócrates e de Guterres. Tem o pior dos dois mundos. De Sócrates herdou a arrogância e um certo autoritarismo. De Guterres herdou o laxismo e a frustração política. Ambos – Costa e Guterres – quiseram uma maioria absoluta e não tiveram. Ambos tiveram uma vitória com sabor a derrota. Ambos ficaram sem boas condições para governar. Daqui ao caos ou ao pântano a distância não é longa. Basta conhecer um pouco da nossa história política.
AS PRIMÁRIAS NOS EUA
- Depois da última super 3º feira , as primárias dos Democratas nos EUA levaram uma enorme reviravolta:
- Até aqui, Bernie Sanders era o grande favorito à nomeação. Joe Biden, por sua vez, estava morto e enterrado.
- Agora, as expectativas inverteram-se – Sanders continua a ser um candidato forte mas Biden ganhou uma dinâmica de vitória que pode ser imparável. É muito provável que venha a ganhar estas primárias.
- Na minha opinião, Biden é um candidato mais forte que Sanders para tentar derrotar Donald Trump.
Segundo: porque tem mais estatuto. Foi vice-presidente dos EUA e esse estatuto conta. Conta na política interna e no plano internacional.
Terceiro: porque vai ter, na altura própria, o apoio de Obama. E esse apoio é muito importante. Obama tem um peso político que não é irrelevante.
Finalmente: não é por acaso que foi em relação a Biden que o actual presidente fez a pressão que fez junto da Ucrânia para que ele e o seu filho fossem investigados. Esta é a prova provada que, aos olhos de Trump, Joe Biden é o seu adversário mais forte.
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