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Nicolau do Vale Pais
11 de Março de 2011 às 12:43

Geração Tua (respondendo ao apelo do Sr. Presidente da República)

Sendo jovem e privilegiado por poder fazê-lo, correspondo aqui ao apelo do Sr. Presidente da República no seu discurso de tomada de posse, e venho "fazer ouvir a minha voz".

A buzina de "Amália" tocava em Cascais e fazia-se ouvir em Carcavelos; por causa disso, o pessoal que operava os comboios "da linha", baptizou assim, ingenuamente, a locomotiva L301. Tinha entrado ao serviço em 1948, ligando o Cais do Sodré a Cascais, sendo uma das primeiras locomotivas eléctricas utilizadas em Portugal. Pode vê-la no Museu Ferroviário do Entroncamento, cidade seminal na história do comboio em Portugal.

Karl Emil Biel (Emílio Biel, como ficou conhecido no Norte, onde decidiu viver a partir dos finais do séc. XIX) foi pioneiro absoluto da fotografia em Portugal, enquanto fotógrafo da Casa Real do Rei Consorte D. Fernando II. Foi ao fotografar o Corgo, Vila Real, que nasceu a visão de uma Central Hidroeléctrica naquele sítio; como representante de várias firmas alemãs (entre as quais uma predecessora da Siemens), foi impulsionador da instalação de luz eléctrica pública nas cidades do Porto e de Vila Real. Sempre ligado pelo seu espírito filantrópico às transformações com que os ventos da Revolução Industrial haveriam de assolar a Europa, foi Emílio Biel quem conduziu o primeiro carro-eléctrico da cidade do Porto, circulando entre a Praça da Batalha e a Estação das Devesas, em Gaia. A vida e obra deste visionário podem ser lidas no livro "A Central do Biel: um Enquadramento para a Musealização da Primeira Central Hidroeléctrica Portuguesa", uma edição do Museu do Douro da responsabilidade de Vítor Nogueira; as fotos lá publicadas (muitas da autoria do próprio Biel) revelam mais do que a paixão deste Saxão por Portugal: a escala da Central Eléctrica era a do Rio Corgo, e é dessa harmonia que reza esta história de visão e superação.

Os preparativos políticos e negociais para a Barragem do Tua estão imparáveis; com esta barragem, extinguir-se-á um dos mais belos pedaços de paisagem portugueses, com consequências ambientais e de património irrevogáveis; a Linha do Tua desaparecerá, e o interior ficará mais longe de si próprio e de Lisboa - a escala megalómana a que se pretende erguer este colosso de betão é um hino ao monocefalismo. Já foi assim com a cínica forma como a rede de itinerários e auto-estradas esventrou o país; nessa altura, era preciso "vencer o atraso estrutural". Agora, é por trás das "energias renováveis" e do "futuro energético" que se esconde a continuação do perverso investimento do património colectivo em nome do "progresso"; e será "progresso", com certeza, mas só se pode chamar assim porque entretanto a palavra foi redefinida à dimensão saloia e inculta da classe política dominante, para a qual o território histórica e afectivamente coeso que é Portugal, parece só atrapalhar. A ferrovia e o que ela representa em termos de planeamento futuro, memória colectiva e coesão territorial, foi atirada para o mesmo saco que a política cultural ou, por exemplo, a política de agricultura e pescas - ou a obra é megalómana e dá votos, ou não cabe na agenda.

Sendo jovem e privilegiado por poder fazê-lo, correspondo aqui ao apelo do Sr. Presidente da República no seu discurso de tomada de posse, e venho "fazer ouvir a minha voz": a maioria das evidências que o Sr. Presidente assinalou são verdades insofismáveis, até mesmo obscenas, como é o caso da falta de autonomia (para usar a sua terminologia) dos empresários em relação ao Estado. E é verdade que é preciso um sobressalto cívico, aliás, é preciso ser cívico. Sr. Presidente, o abandono do território e do património colectivo, o Estado concebido como contabilista-mor e a consequente tecnocratização da nossa identidade começou nos Governos por si liderados; este é o modelo de desenvolvimento que germinou em meados dos anos oitenta pela sua mão, e que, ao longo de dez anos de invejável liquidez, nunca foi capaz de entender o sucesso como mais do que obra pública. Disso eloquente exemplo - para além do inexplicável abandono de muitos quilómetros de ferrovia - foi a Cultura reduzida a uma Secretaria de Estado, ou, muitas vezes, a uma paródia de Secretaria de Estado.

Desculpe-me o tom algo ensimesmado, por ventura ríspido e contrastante com o entusiasmo "deolíndico" dos "homens da luta", que a imprensa diz "crescerem do descontentamento" por entre as camadas jovens; é que não é fácil encontrar rumo construtivo quando se passou a juventude e a formação no Cavaquismo e se é um jovem (des)empregado nos tempos de José Sócrates. Espero que possa entender a minha franqueza como penhora da lealdade que sua Excelência me merece. A indignação não basta; nada se muda sem coragem.

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