A mão que embala o berço
Não é piada nem é desdém. No dia da greve, o Negócios fala de "Grave Geral"
Não é piada nem é desdém. No dia da greve, o Negócios fala de "Grave Geral" porque, como escreveu Chesterton, um paradoxo pode despertar os homens para uma verdade abandonada. E a verdade é que dez milhões de grevistas teriam o mesmo impacto que dez no seu destino: nenhum. Já não é o Governo que embala este berço.
Hoje falta-se ao trabalho como forma de protesto. Sabemos porquê: contra as medidas de austeridade. E sabemos para quê: para nada. As medidas têm excepções para poucos mas são irreversíveis para quase todos. Na contagem decrescente para a aprovação final do Orçamento do Estado, os grupos de pressão vão-se infiltrando para safar o seu pecúlio, como os trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos, que afinal têm escusa dos cortes salariais. Mas é como na Groundforce em Faro: recuar na demissão de 22 não tira 314 do olho da rua.
Não é no olho da rua que se faz hoje a greve geral. É uma greve de gente que fica em casa, sem manifestações nem barricadas. É uma greve provavelmente mais dos trabalhadores do Estado que das empresas privadas, mas tardia, incapaz de travar as medidas de austeridade, mais de desistência que de resistência. A nossa história está a escrever-se em números, não em palavras. Os grevistas usam os silêncios. Um credo sem grito. Desta vez, não é "A luta continua", é o luto que continua.
Um cínico diria: os mercados não fazem greve. Se a greve pretende travar as medidas de austeridade, será um fracasso qualquer que seja o número de grevistas. Se pretende fazer um braço-de-ferro "povo contra os mercados", será um desabafo inconsequente - mas respeitável - contra esta sina celerada de perda de salários e de direitos sociais. Se for uma moção de censura popular a quem lidera o Governo, a Assembleia da República e algumas entidades públicas e privadas, então ela é justa. Há demasiado tempo que o Estado deixou de nos olhar como cidadãos: nuns anos somos eleitores, noutros somos contribuintes, hoje somos sujeitos passivos. Mas mesmo esta afirmação de dignidade é vã: esta vaga ou é europeia ou não é nada. E a Europa está a falhar.
O centro de decisão de Portugal não está mais em São Bento nem no Parlamento, não está sequer em Bruxelas, em Frankfurt ou em Berlim - está mais para lá do que para cá, à deriva, nos mercados. Estamos com o coração nas mãos... dos credores. E a taxa de juro tornou-se o indicador diário e trémulo do nosso rumo a caminho do pedido de SOS ao Fundo Monetário Internacional.
Ontem foi mais um dia nessa marcha lenta. Depois de mais um mês de execução orçamental medíocre, e com Angela Merkel a admitir novos socorros na Europa (atenção ao plural...), até o Governo parece já mentalizado para essa inevitabilidade, com o PS activamente a demarcar-se do seu ministro das Finanças e o Governo a entregar os pontos, a desistir. Já estamos a transferir os nossos medos da ameaça de entrada do FMI para outra pior: a de saída do euro. Será essa a nossa próxima psicose.
No livro de Eclesiastes, a Bíblia diz que há um tempo para tudo (palavras notáveis, que inspiraram por exemplo "Miss Sarajevo", dos U2). "Tempo de rasgar e tempo de coser,/ tempo de calar e tempo de falar,/ tempo de amar e tempo de odiar,/ tempo de guerra e tempo de paz." Os tempos que vivemos são de carência, de trabalho e de solidariedade. Mas têm de ser também tempos para outra coisa maior do que ganhar menos e pagar mais. Se tivéssemos outros líderes, talvez esta greve servisse para pedir ao menos isso: a dignidade e a esperança; e que tudo isto valha a pena.
psg@negocios.pt
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