Chipre mora aqui
O grande pecado de Dijsselbloem terá sido, afinal, falar do que está para vir quando o tempo não está maduro para mudar de narrativa sobre ajudas à banca. E o tempo não está maduro porque muito banco continuará podre.
De acordo com estimativas do FMI, entre 2007 e 2010 os bancos europeus sofreram perdas de quase um bilião de euros. Entre Outubro de 2008 e Outubro de 2011, a Comissão Europeia deu luz verde a ajudas de Estado ao sector num valor quase cinco vezes superior: 4,5 biliões de euros, o equivalente a 37% do PIB de toda a União Europeia. Um pouco menos de um terço desse gigantesco “cheque” – afiançado por contribuintes actuais e futuros, com ou sem acções de bancos, com ou sem depósitos neles – foi efectivamente usado: adiantou-se aos bancos, com a promessa de que serão devolvidos com juros generosos, 1,6 biliões de euros, ou seja 13% do que produzem anualmente os 27 países europeus. Parte desse dinheiro foi destinado ao reforço dos rácios de capital e, nessa medida, à criação de “almofadas” para absorver internamente futuras perdas.
Os bancos desempenham um papel insubstituível nas sociedades modernas. E esse reconhecimento colectivo está bem expresso nos números acima. Mas quando se transformam – por incúria, má gestão, ganância ou por causa dos azares da vida – em “too-big-or-systemic-to-fail” para logo a seguir se converterem em “too-big-to-save” deixam de existir para servir as sociedades e passam a servir-se delas.
Travar esse ciclo perverso pressupõe que o risco de um fracasso volte a ser primordialmente assumido por quem se mete no negócio da banca e por quem dele se serve – em rigor, essa será a melhor forma de, desde logo, reduzir o próprio risco de fracasso. Isso pressupõe mexer nos preços, em todos os preços: de quem empresta à banca, de quem trabalha na banca, de quem pede à banca e de quem nela aforra. Mexer neles e olhar para eles com todos os olhos – e com outros olhos.
O presidente do Eurogrupo disse-o preto no branco no rescaldo do resgate a Chipre, onde pela primeira vez nesta saga de resgates a países do euro o dinheiro garantido pelos contribuintes europeus não foi adiantado para tapar buracos de bancos que, pelo que cada vez mais se sabe, foram cavados sobretudo pela ganância do dinheiro fácil, agilizada por políticos e empresários sem escrúpulos, que contaram (no mínimo) com a complacência de uma supervisão negligente e depositantes (no mínimo) deslumbrados. Quem pôs dinheiro no Laiki ou no Cyprus com a promessa de juros em torno dos mesmos 6% que prometia o Icesave islandês deveria ter desconfiado. Mas não. Segundo o Barclays, 42% dos depósitos em Chipre estavam parqueados em contas superiores a 500 mil euros (e 46% estão em contas com menos de 100 mil euros, que não serão sujeitas a perdas).
Ainda assim, meio mundo caiu em cima de Jeroen Dijsselbloem. Meio mundo, mais à esquerda (mas não só) caiu em cima do socialista holandês que defendeu que é tempo de pôr um fim na socialização automática das perdas da banca. Meio mundo ficou perplexo por o mais inexperiente dos ministros europeus das Finanças ter dito em público que o retorno a uma normalidade mais sadia na relação entre os Estados e os bancos anda há longos meses a ser preparado: Que antes de voltar a apelar ao bolso (cada vez mais vazio) dos contribuintes, é preciso responsabilizar os donos mas também os “credores dos bancos”, onde se incluem obrigacionistas e depositantes.
Esse princípio foi explicitamente reconhecido pelo G20 e, depois, na comunicação de 6 de Junho de 2012 com que a Comissão Europeia abriu o debate público sobre qual deve ser o “manual europeu” para enfrentar crises na banca, no quadro da união bancária que está em construção. “Em particular, accionistas e credores deverão suportar os custos de resolução (de um banco) antes de qualquer financiamento externo ser concedido, e soluções dentro do sector privado deverão ser encontradas em vez de se usar dinheiro dos contribuintes”, lê-se na comunicação que está a ser discutida há quase dez meses.
Faria de Oliveira, presidente da Associação Portuguesa de Bancos (APB), juntou-se ao coro dos críticos de Dijsselbloem. Disse à Rádio Renascença que os depósitos são “sagrados”. Serão? Quando existe uma garantia de Estado a proteger os depósitos até 100 mil euros (até há bem pouco era de 20 mil euros) ficará explicitamente reconhecido o risco de perdas nos valores superiores caso os bancos dêem para o torto.
A consulta pública da comunicação da Comissão terminou no final de Dezembro. Foram apresentadas 67 contribuições. A APB não se manifestou, mas a Federação Europeia de Bancos, de que é membro, sim. E fê-lo em termos em que admite a possibilidade de perdas para os credores dos bancos, embora frise tratar-se de um assunto “altamente controverso que merece uma discussão mais aprofundada”.
Afinal, o grande pecado de Dijsselbloem terá sido falar do que está para vir quando o tempo não está maduro para mudar de narrativa sobre ajudas à banca. E o tempo não está maduro porque muito banco continuará podre. Aqui, em Espanha, na Irlanda, no Reino Unido, em Itália, na Alemanha... Se houvesse só banco podre em Chipre e menos vontade de culpar os políticos do Norte por tudo o que de mal acontece (possa acontecer ou tenha acontecido) aquém Reno, já se teria erguido uma estátua ao impronunciável ministro holandês.
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