Um templo japonês em Algés
A comida japonesa é aquela que me dá mais prazer e, em simultâneo, angústia. Frequento as barras de dois ou três "sushiman" da capital, compro livros, papo séries de televisão, faço minicursos sobre lavagem de arroz e já gastei tanto dinheiro no Kabuki Wellington (Madrid) que se minha mãe soubesse mandava-me a uma junta médica. E, vai-se a ver, permaneço ignorante.
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Os japoneses criaram uma gastronomia que nos obriga a reflectir sobre as virtudes da humildade - coisa pouco praticada no Ocidente. De um país que determina que um cozinheiro leva dez anos a estar pronto para se apresentar ao público (por cá, dois anos chegam), podemos esperar tudo. Não falo de sushi, sashimi, tempuras ou ramen. Falo dessa coisa que se chama menu kaiseki - que é o expoente em matéria de criatividade, beleza e sabor e que, como se imagina, tem uma carga simbólica em cada pequeno detalhe do prato. Creio que, mesmo provando um menu kaiseki por mês, continuaria a não conhecer a gastronomia japonesa em toda a sua dimensão.
Cerimónia festiva, um menu kaiseki é sempre uma interpretação de cada cozinheiro, mas é ponto assente que o conjunto dos pratos testemunha todas as técnicas de confecção. Haverá sempre sushi e sashimi, mas o ponto alto da cerimónia são os produtos de época (peixes, carnes, legumes ou fruta) crus, cozidos, grelhados, fritos, assados ou avinagrados.
Quem iniciou os portugueses no kaiseki foi Tomoaki Kanazawa, primeiro no Tomo e depois no próprio Kanazawa. O que ele fez neste domínio daria para escrever uma tese, mas, há menos de um ano, regressou ao Japão para liderar um restaurante de cozinha francesa (Deus lhe perdoe). Nessa altura, houve gente que se vestiu de luto, mas, com lucidez, Tomo escolheu Paulo Morais para continuar o seu projecto. Paulo é o chef português que dedicou toda a sua vida às gastronomias asiáticas e que, com justiça, já tem escola própria.
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Num restaurante onde se sentam nove sortudos, Paulo Morais cria todos os meses um menu kaiseki com o que de mais exclusivo encontra. Tanto podemos sentir citrinos que parecem brincadeiras de Deus, como ficar de olhos fechados a tentar descrever um caldo qualquer (só a tentar). Tanto nos espantamos com a ligação de perdiz com búzios, como sentimos humilhação perante a descoberta de um caranguejo real dos Açores (que vergonha!). Tudo isso, mais niguiris de peixe e mariscos superiormente cortados e assentes em arroz fermentado e avinagrado, na companhia de sake, vinhos nacionais ou chá.
Como temos essa doença do "melhor" colada no espírito, há gente que quer saber quem se destaca: o Tomo ou o Paulo? É uma pergunta tonta. Mas uma coisa é certa. Com Paulo Morais, um menu kaiseki não é só refeição. É uma aula. É um exercício de generosidade e humildade, aqui e ali temperados com humor.
A chatice é a nossa incapacidade para absorver tudo aquilo que o chef nos ensina em duas horas. Por isso, da próxima vez que regressar ao Kanazawa, vou colar um gravador na jaleca do mestre. Também tenho direito a reduzir a minha ignorância.
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