O caso das auto-estradas portuguesas: A evidência do excesso de vias*
Ao percorrer o país não podemos esconder uma primeira impressão de satisfação e orgulho: nos últimos 20 anos dotou-se o território com uma rede de auto-estradas que permite, com facilidade e comodidade, percorrer o país em vias com qualidade e densidade do melhor que podemos encontrar em qualquer ponto do mundo.
Porém, ao despir a pele do consumidor hedonista e ao adoptar a perspectiva do economista, a sensação é de um terrível desconforto: os indicadores relevantes – dos mais elementares aos mais sofisticados - apontam para um desbaratar de recursos em consumo conspícuo muito acima das reais capacidades económicas do país.
A política de investimentos públicos seguida nos últimos 20 anos – e aquela que no mesmo sentido se pretende agora continuar - explica, em muito boa parte, a terrível dificuldade que o país enfrenta para a saída do crescimento rastejante da última década devido ao excesso de consumo e aos errados investimentos que a caracterizam. Esta política não tem sido suportada por análise económica rigorosa de longo prazo, sendo antes guiada pelas oportunidades políticas do momento. A forma como, recentemente, foram tomadas e alteradas sucessivas decisões sobre a construção do novo aeroporto ilustram bem a pouca e má economia que contêm aquelas decisões.
Pressente-se que há aqui um problema de grande importância. A recente eleição do tema para a disputa política, por parte da posição, e o secretismo e nervosismo com que o governo aborda as informações sobre a construção de novas infra-estruturas em geral e as auto-estradas em particular revela que se começa a perceber a gravidade do problema.
A evidência deste excesso é de tal forma expressiva que espanta que os números relevantes sejam pouco conhecidos e divulgados.
Elaborei, na tabela abaixo, os indicadores básicos – quer de natureza física, quer de expressão económica – sobre a extensão das redes de auto-estradas dos países da OCDE.
Desde 1990, a extensão das auto-estradas portuguesas multiplicou por 6, valor só ultrapassado pela Irlanda . A seguir a Portugal vem a Finlândia, com uma mera multiplicação por 3.
Na União Europeia a 25, em média, as auto-estradas representam 1,2% da rede viária, contra 2,3 % em Portugal (1,4% na união a 15).
O PIB português representa 1,3% do PIB total da União Europeia a 25 mas as nossas auto-estradas são 3,2% das existentes naquele conjunto de países. Condizente com estes valores, a carga transportada nas nossas estradas é de cerca de 1,4 % da carga total movimentada nas estradas comunitárias.
A parte das auto-estradas no conjunto da rede viária representa 2,3 % - o terceiro valor mais elevado, apenas inferior ao caso de Espanha e do Luxemburgo.
Mas os indicadores mais significativos são os que relacionam a extensão da rede com a capacidade económica do país. Portugal é o segundo país com mais quilómetros (8,3 km) por bilião de dólares de PIB. Apenas o Canadá – devido á extensão do território – ultrapassa aquele valor.
A elasticidade da rede de auto-estradas, relativamente ao PIB, entre 1990 e 2006, atingiu o notável valor de 4,55, só ultrapassado pelo caso excepcional da Irlanda. Mesmo no período de 2000 a 2006, continuou-se a construir muito, apesar do abrandamento do crescimento económico. A elasticidade de novas construções, relativamente ao PIB, continuou a ser das mais elevadas, só sendo ultrapassada pela Polónia, Irlanda e Dinamarca.
A União Europeia a 25 tem, em média, 13 km de auto-estradas por 100.000 habitantes, contra 17 km em Portugal, e regista 15 km de auto-estradas por 1000 km2 de superfície, contra 20 km em Portugal.
Porém, há escassez de estradas no país. Os meros 80.000 km da nossa rede total de estradas é insuficiente. Temos auto-estradas a mais e vulgares estradas a menos. Paralelamente a um excesso de auto-estradas, o país conhece um deficit evidente de vias vulgares e de caminhos municipais. Muitos países com dimensão semelhante ou inferior à nossa, apesar de terem construído muito menos auto-estradas, têm uma rede viária normal mais extensa que a portuguesa. A pequena Irlanda tem mais 20% de estradas que Portugal; outros países comparáveis registam situação semelhante: a Finlândia com mais 30%, a Bélgica com mais 89%, a Grécia com mais 44%, a Suécia com mais 76% e a Áustria com mais 34%.
Pressente-se que há aqui um problema de grande importância. A recente eleição do tema para a disputa política, por parte da oposição, e o secretismo e nervosismo com que o governo aborda as informações sobre a construção de novas infra-estruturas em geral e as auto-estradas em particular revela que se começa a perceber a gravidade do problema.
Um outro ângulo para avaliar a situação é a comparação da extensão da rede de auto-estradas com a actividade gerada na rede viária.
Tomemos a evolução do transporte de mercadorias em território nacional. A elasticidade do volume de mercadorias face ao PIB, entre 1990 e 2006, foi de apenas 0,27 - quando a elasticidade da rede das auto-estradas foi de 4,55. Veja-se o caso Espanhol: no mesmo período, a elasticidade do volume de mercadorias transportadas foi de 0,81, a condizer com os 0,88 de elasticidade extensão das auto-estradas. Por detrás destes números esconde-se este registo brutal: nos últimos 15 anos, enquanto Portugal aumentou a rede de auto-estradas em 480% e o volume das mercadorias transportadas em 28,5%, a Espanha aumentou sua rede de auto-estradas em 130% e o volume de mercadorias transportadas em 121%.
Vejamos o que se passa na área do movimento de passageiros. O número de passageiros/km por pessoa, em 2004, era, em Portugal, de 6.396 biliões, contra 10.624 biliões na União Europeia 15. Estes números escondem um brutal aumento da mobilidade individual e uma redução, contra a corrente, do transporte colectivo. Entre 1990 e 2004, em Portugal, o número de passageiros/ km em carros individuais aumentou 139% - implicando uma elasticidade, face ao PIB, de 1,3 - contra apenas 31% na União Europeia a 15; a Espanha teve um aumento mais moderado: 104%. Em contrapartida, o transporte colectivo cresceu, em Portugal, apenas 0,5% naquele período, contra 12,8% na União a 15 e 60% em Espanha. Mas o mais notável é que desde 1995 até 2004, enquanto na União Europeia a 15 o transporte colectivo aumentou 10%, em Portugal regrediu 4% e em Espanha registou um aumento notável de 35%.
De acordo com as informações disponíveis, foram emitidos anúncios de concursos públicos para a construção de 2.433 km de novas estradas, dos quais 881 km (cerca de 36%) serão auto-estradas. Estas obras, a concretizarem-se, representariam um acréscimo de 48% na rede de auto-estradas e de apenas 2% na rede de estradas vulgares. O peso das auto-estradas na rede total passaria a ser de 3,3%.
Os números sobre o excesso de auto-estradas em Portugal são inquestionáveis e impressionantes. A questão que pode ser levantada é outra: e depois? O país não pode dotar-se deste luxo e mesmo acarinhá-lo e desenvolvê-lo? É uma questão legítima que não pode ser evitada e será o tema a do próximo artigo.
*Dólares correntes em PPC
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