Para que não restem dúvidas: Finanças públicas – 1986-1995 e 1996-2001 (II)
Na primeira parte deste artigo, publicada faz hoje uma semana, expliquei, na secção 0, as razões por que me resolvi a comparar, no início de 2005, a gestão das finanças públicas nos dez anos de governação de Cavaco Silva com os seis anos de governação
2. O saldo orçamental primário ciclicamente ajustado (SOPCA) e as despesas públicas primárias ciclicamente ajustadas (DPPCA) em Portugal.
Se considerarmos – erradamente – apenas o saldo orçamental e as despesas públicas totais face ao PIB como é apresentado na figura 1, chegaremos à conclusão, sem grande dificuldade, que o défice público é muito maior entre 1986 e 1995 do que nos seis anos seguintes (uma média de 6.2% do PIB contra 3.6%) e que o peso das despesas públicas no produto cresce de 41.7% para 43.7% do PIB nos dez anos da governação de Cavaco Silva (tendo atingido um máximo de 47.8% em 1993, pelo que se nota uma redução de quase 4 pontos percentuais (pp) do PIB nos dois anos seguintes) e sobe depois cerca de 2.5 pontos até 2001 (43.7% para 46.2% do PIB, ainda que tivesse descido até 1999 e subido depois).
Figura 1. Saldo Orçamental e Despesas Públicas em percentagem do PIB, 1986-2001
No entanto, a história é bem diferente se, ao invés, expurgarmos o saldo orçamental do efeito do ciclo económico e lhe retirarmos os juros da dívida pública, obtendo assim o saldo orçamental primário ciclicamente ajustado (SOPCA); e se retirarmos à despesa pública total os juros da dívida, obtendo, assim, a despesa pública primária. A evolução destes dois indicadores entre 1986 e 2001 pode ser observada na figura 2; para melhor se perceber a distorção que os juros da dívida pública podem introduzir na análise, o seu peso no PIB de 1986 a 2001 é mostrado na figura 3.
Figura 2. Despesa Pública primária e saldo orçamental primário, ambos ciclicamente ajustados, em percentagem do PIB, 1986-2001
Na verdade, agora, nota-se que este saldo orçamental «corrigido» – e bastante mais representativo da realidade das finanças públicas do que o saldo orçamental «por si só» – só por um ano (1991) foi negativo nos dez anos de 1986 a 1995, tendo verificado um valor médio de 1.3% do PIB; a partir de 1996, é evidente a deterioração que o leva para terreno negativo a partir de 1999 (inclusive), isto é, três anos em seis, descendo então a média entre 1996 e 2001 para –0.1% do PIB. Se estabelecermos um ranking dos SOPCA durante os dezasseis anos da análise, verificamos que quatro dos cinco piores resultados foram registados no consulado socialista (1998 a 2001) e os três piores (14º, 15º e 16º lugares) entre 1999 a 2001 (ver quadro 1). O pior ano de entre os 10 de governação Cavaco Silva foi 1991 (SOPCA de –0.2% do PIB) e surge na 13ª posição; o melhor resultado conseguido na governação António Guterres surge apenas em 6º lugar – o que significa que os cinco melhores SOPCA pertencem aos 10 anos em que o governo foi do PSD. Julgo tratar-se de uma constatação significativa (a quem deixará dúvidas?), mas muito mais há ainda a referir.
A evolução das despesas públicas primárias também ciclicamente ajustadas (DPPCA) confirma o sentido que acabei de descrever, pois situam-se, em média, em 35.5% do PIB entre 1986 e 1995 e em 41.5% entre 1996 e 2001; mais: no primeiro período, mesmo partindo de uma base muito baixa em 1985 (33.7%) – e em que, portanto e naturalmente, seria mais fácil registar subidas maiores –, a variação nos dez anos até 1995 foi de 5 pp contra um aumento de 4.5 pp nos seis anos até 2001, o que resultou num aumento médio anual do peso da despesa pública primária no PIB de 0.5 pp entre 1986 e 1995 e de 0.75 pp entre 1996 e 2001.
Figura 3. Juros da Dívida Pública em percentagem do PIB, 1986-2001
Esta diferença entre a evolução das despesas públicas totais e as DPPCA é não só um reflexo da alta do ciclo económico vivida na segunda metade dos anos 90 mas, acima de tudo, da descida drástica das taxas de juro da dívida pública portuguesa a partir de 1992, que mais foi sentida a partir de 1996, quando começou a ser assimilado pelos mercados financeiros que Portugal tinha reais hipóteses de aderir à União Económica e Monetária (UEM) logo a partir de 1999 (como acabou por acontecer). Este fenómeno é visível na figura 3, em que é possível constatar que entre 1986 e 1995, os juros da dívida pública assumiram um valor médio de 7.5% do PIB, que compara com uma média de 3.8% entre 1996 e 2001.
Isto significa que a margem de manobra resultante da descida dos juros da dívida pública a partir do final de 1995 e até 1999 foi totalmente desbaratada, o que é tanto mais gravoso se nos recordarmos que, a partir de 1996, as políticas monetária e cambial deixaram de poder ser usadas como os governos entendiam, como sucedia no passado, pela convergência das taxas de juro em direcção às taxas de referência na Europa (as taxas alemãs) e o escudo, mesmo antes de 1999, já se encontrava, na prática, ligado às moedas dos nossos principais parceiros comerciais. Em particular, a queda das taxas de juro haveria de levar a uma extraordinária diminuição do preço do dinheiro, o que faria literalmente explodir o crédito a particulares e empresas, levando a que o país se tivesse tornado, desde o início do presente século num dos mais endividados da Europa, claramente acima da média comunitária. Ora, quando há dívidas para pagar, menos recursos ficam disponíveis para consumir e investir, porque os orçamentos, quer de famílias, quer de empresas, não esticam – pelo que foi sem surpresa que o abrandamento chegou, ainda em 2000. Assim, esta tendência para o endividamento dos agentes privados deveria ter sido contrariada pela acção do Estado, o que não veio a acontecer. Com a limitação das políticas monetária e cambial, a política económica deveria ter assentado numa política orçamental adequada e no lançamento de reformas estruturais para melhorar a competitividade da nossa economia – que é, numa conjuntura exigente e nova como o da moeda única, uma necessidade imperiosa para o aumento a prazo da taxa potencial de crescimento económico, da produtividade e do emprego.
Infelizmente, a partir de 1996, não só em termos estruturais a inacção foi quase total, como o que se fez foi deixar «engordar» o sector público administrativo através de uma política orçamental erradamente expansionista – como as figuras 2 e 3 provam –, que levou à degradação estrutural das finanças públicas portuguesas, ainda por cima num período de conjuntura externa e interna extremamente positiva (o que se reflectiu no facto de as receitas fiscais terem crescido, entre 1996 e 2000 a uma taxa ligeiramente inferior a 10% ao ano) e que, em conjunto com a já referida queda das taxas de juro, conferiu uma margem de manobra mais do que suficiente para que, a ter existido uma consolidação orçamental efectiva (do lado da despesa, claro), tivéssemos chegado a 2000 / 2001 numa situação próxima de equilíbrio – o que, por exemplo, aconteceu com a nossa vizinha Espanha (ver próxima secção). Como não foi isso que sucedeu, foram gerados graves problemas de sustentabilidade nas nossas finanças públicas que se tornaram visíveis com o abrandamento da economia iniciado em 2000 e acentuado a partir de 2001 / 2002.
N.R.: Fonte (gráficos): Comissão Europeia
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