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Stephen Roach
05 de Março de 2013 às 13:42

O vazio estratégico dos Estados Unidos

Aparentemente, os responsáveis da Reserva Federal estão a reconsiderar a adequação de aplicar uma flexibilização monetária (“quantitative easing” ou “QE”). Devem fazê-lo. Esta política não testada não apenas falhou na tarefa de conduzir a uma recuperação económica aceitável, como também aumentou o risco de uma nova crise.

As minutas da reunião de 29 e 30 de Janeiro do comité de operações de mercado aberto (FOMC, na sigla original) falam de um descontentamento latente: “muitos participantes (…) expressaram algumas preocupações sobre os custos e riscos potenciais que decorrem de mais compras de activos”. As preocupações vão das inquietações sobre as ramificações desestabilizadoras de uma estratégia de saída do QE à apreensão pelas perdas de capital na carteira de activos em rápido crescimento da Fed (actualmente três biliões de dólares e a caminho dos quatro biliões de dólares, no final deste ano).

Tão sérias como estas preocupações podem ser, ignoram o que pode bem ser a maior falha na estratégia sem precedentes da Fed: uma ênfase na táctica de curto prazo em detrimento de uma estratégia de longo prazo. Surpreendida pela crise de 2007-2008, a Fed tem agravado o diagnóstico errado original do problema ao repetidamente redobrar as respostas tácticas, com duas rondas de QE antes da actual. Os responsáveis da Fed, ao desenharem um falso sentido de conforto com o sucesso do QE1- uma injecção massiva de liquidez nas profundezas de uma crise terrível – equivocadamente chegaram a acreditar que tinham encontrado o modelo certo para as acções políticas subsequentes.

Esta abordagem poderia ter funcionado se a economia dos Estados Unidos não fosse afectada por uma doença cíclica – uma queda temporária da procura agregada. Neste caso, as políticas anti-cíclicas – quer orçamentais quer monetárias – poderiam eventualmente ser esperadas para tapar o buraco da procura e fazer a economia avançar novamente, como os keynesianos argumentam.

Mas os Estados Unidos não sofrem de um mal temporário e cíclico. O país é afectado por uma doença muito diferente: uma recessão prolongada que continua a afectar as famílias americanas, cujo consumo representa cerca de 70% do PIB. As duas bolhas – imobiliária e do crédito – contra as quais se endividaram livremente as famílias americanas há muito que estouraram. Mas os choques persistem: os empréstimos das famílias representavam ainda 113% do rendimento pessoal disponível em 2012 (face aos 75% nas três décadas finais do século XX) e a taxa de poupança pessoal atingiu, em média, apenas 3,9%, no ano passado (o que compara com os 7,9% entre 1970 e 1999).

Compreensivelmente fixados na reparação do balanço, os consumidores americanos não morderam a isca das autoridades monetárias e orçamentais. Em vez disso, têm cortado no consumo. O aumento do gasto para consumo pessoal ajustado pela inflação atingiu, em média, uns meros 0,8%, nos últimos cinco anos – o mais severo e prolongado abrandamento no crescimento da procura dos consumidores na era pós-Segunda Guerra Mundial.

A força bruta do massivo estímulo monetário e orçamental soa forçada como remédio cíclico para este problema. Outra abordagem é necessária.

O foco, pelo contrário, deve estar em acelerar o processo de reparação do balanço, enquanto ao mesmo tempo as alavancas políticas monetárias e orçamentais retornam a níveis mais normais. O perdão das hipotecas que superam o valor das casas, bem como a redução do excesso de execuções, que supera 1,5 milhões de casas, devem ser parte desta solução. De que outra forma pode esvaziar-se finalmente o mercado imobiliário, tão afectado pela crise, para os restantes proprietários de casas dos Estados Unidos?

O mesmo pode ser dito para os incentivos às poupanças, o que poderá contribuir para a segurança de longo prazo das famílias americanas, a maioria das quais sofreu massivas perdas de riqueza na Grande Recessão. As contas individuais de poupança e os 401 mil esquemas de pensões, incentivos especiais para as famílias de baixos rendimentos (a maioria não tem planos de reforma) e um final à repressão financeira que a política de juros 0% da Fed impõe aos aforradores, devem também ser parte da solução.

Sim, são políticas controversas. O perdão de dívida levanta preocupações éticas sobre comportamentos imprudentes e irresponsáveis. Mas, a conversão dos empréstimos imobiliários “sem recursos”, onde apenas a casa está em risco, nos chamados “recursos de passivos”, para os quais o não pagamento pode ter consequências para todos os activos do mutuário, poderia resolver este problema e, simultaneamente, atenuar a cultura americana de alavancagem com um muito maior sentido de responsabilidade.

O tempo é também uma questão, especialmente no que diz respeito a incentivos de poupança. Para evitar a quebra na procura agregada, que pode surgir de uma subida abrupta na poupança, estas medidas devem ser faseadas num período de três a cinco anos.

O principal benefício destas propostas é que são mais estratégicas do que tácticas – melhor alinhadas com os problemas com o balanço que estão, de facto, a afectar a economia. Como o sistema de laissez-faire por excelência, os Estados Unidos terceriarizaram a estratégia da mão invisível do mercado por demasiado tempo. Isso deixou o governo trancado numa abordagem reactiva e, muitas vezes, equivocada para problemas inesperados.

Assim, a Fed está focada em medidas de recuperação desta crise mais do que em como evitar outra. O mesmo é verdade para a política orçamental norte-americana, com um debate conduzido por eventos que tem agora horizontes temporais ainda mais curtos: o precipício orçamental a 1 de Janeiro, cortes nos gastos públicos a 1 de Março, o vencimento da resolução orçamental a 27 de Março, e o novo limite para o tecto da dívida a 18 de Maio. Um mercado de dívida complacente, que pode bem ser a próxima bolha, é erradamente visto como a validação final desta abordagem míope.

Os perigos deste vazio de estratégia americana e a relacionada propensão pelo curto prazo têm aumentado durante algum tempo. O professor da Harvard Business School, Michael Porter, levantou esta preocupação, em 1996, num famoso artigo na Harvard Business Review. O seu foco estava na tomada de decisão das empresas e nos incentivos desalinhados que levavam a uma dicotomia preocupante entre as tácticas de curto prazo da “eficácia operacional” (corte de custos, outsourcing e reengenharia) e as apostas visionárias de longo prazo que enquadraram estratégias bem sucedidas.

Enquanto as críticas de Porter eram dirigidas aos gestores de negócios, é fundamental a aplicação ao actual debate sobre a política norte-americana. Uma estratégia bem sucedida de longo prazo não pode ser vista como uma sucessão de ajustes de curto prazo.

O debate interno na Fed representa um reconhecimento saudável e muito esperado de que o banco central pode estar a cavar um buraco cada vez mais fundo ao comprometer-se com políticas erradas que visam o problema errado. Um debate comparável está a aumentar sobre a política orçamental. Podem os Estados Unidos finalmente enfrentar os perigos do seu vazio de estratégia?

Stephen S. Roach, membro do corpo docente da Universidade de Yale, foi presidente do Morgan Stanley Asia e é autor de "The Next Asia". 

Copyright: Project Syndicate, 2013.

www.project-syndicate.org

Tradução: Raquel Godinho

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