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Bruna, mas não tanto

Volto ao caso Bruna Real, a professora de Mirandela que se desnudou nas páginas da Playboy. Não me deterei naquilo que, para quem não é de todo ingénuo, parece quase uma evidência, a de a voluptuosa professora ter antecipado o alarido que aí vinha...

Volto ao caso Bruna Real, a professora de Mirandela que se desnudou nas páginas da Playboy. Não me deterei naquilo que, para quem não é de todo ingénuo, parece quase uma evidência, a de a voluptuosa professora ter antecipado o alarido que aí vinha pouco se importando com as suas consequências em terras transmontanas (no mínimo) ou com o objectivo, planeado com calculismo digno de playmate experimentada, de o provocar - ao alarido, e quanto mais melhor - como etapa intermédia de uma promissora carreira de manequim, apresentadora de televisão ou simplesmente "famosa" (no máximo).

O que estranho, sim, é o argumento da defesa intransigente da privacidade que foi usado por certos sectores (Fenprof à cabeça) para condenar a atitude da Câmara de Mirandela de suspender a actividade docente da professora. Como se a reserva da vida privada fosse um valor absoluto, sempre inderrogável em caso de conflito com outros interesses que a própria Constituição também protege. E como se, neste caso, não fosse a privacidade exactamente o contrário da exposição pública que a professora parece perseguir.

É verdade que estamos todos de acordo quanto a uma regra essencial: a de que o modo como o trabalhador ocupa o tempo em que não está a executar a sua prestação de trabalho só a ele diz respeito, sendo pois irrelevante disciplinarmente, em princípio, aquilo que decide ou não fazer na sua vida privada. Mas, se isto é assim, casos há em que se pode justificar que o legítimo direito do trabalhador em salvaguardar a sua esfera privada ceda perante o direito do empregador em procurar garantir a sua autoridade e o bom funcionamento da organização por si dirigida. Casos há mesmo em que o trabalhador tem um particular dever de se abster de determinados comportamentos na sua vida privada que façam perigar a sua prestação laboral. Para não ir muito longe, basta pensar nos praticantes desportivos, que, nos termos do regime jurídico que lhes é aplicável, têm como dever "preservar as condições físicas que lhes permitam participar na competição desportiva objecto do contrato", regra que, só por si, pode ser de molde a justificar que os clubes desportivos imponham aos seus praticantes determinadas restrições quanto a saídas nocturnas, por exemplo. Ou nos tripulantes de aeronaves, que devem observar períodos mínimos de repouso entre voos. Ou ainda nos trabalhadores sujeitos a testes de controlo de consumo de álcool ou drogas, para protecção da segurança do próprio trabalhador ou quando particulares exigências inerentes à actividade o justifiquem.

Mas além destas situações - de trabalhadores com deveres específicos de preparação para a prestação de trabalho - outras existem em que comportamentos da vida privada do trabalhador, praticados fora do local e do tempo de trabalho, podem ter relevância disciplinar e até mesmo constituir fundamento de despedimento. Na verdade, mesmo nos momentos em que não estão a executar a sua prestação de trabalho - nos períodos de descanso entre jornadas de trabalho, em férias e em situações de faltas, justificadas ou injustificadas -, os trabalhadores permanecem obrigados a um dever de respeito ou lealdade. Que os impede, nessas alturas também, de adoptar comportamentos que, de alguma forma, possam lesar ou contribuir para lesar a imagem ou o prestígio do empregador ou dos seus representantes. Ou que, pelos seus reflexos, possam pôr em causa o ambiente de trabalho na empresa ou o cumprimento eficaz do contrato de trabalho. Para que se perceba bem que pode ser legítima, em certos casos, a ingerência do empregador na vida privada do trabalhador para fins disciplinares, pergunto-vos como reagiriam perante o caso de alguém que agride o patrão num local de diversão nocturna porque este não procedeu ao desejado aumento salarial ou por qualquer outra razão profissional. Ou o do comandante do avião, como tal identificado, que, no mesmo hotel onde estão hospedados os passageiros, se embriaga e provoca desacatos com clientes do hotel, desse modo afectando a imagem da companhia aérea para que trabalha. Ou ainda o do funcionário do partido político que, nas suas horas vagas, faz propaganda a favor de outro partido. Acaso constituirá a reserva da vida privada razão suficiente para evitar a punição disciplinar?

Não me interpretem mal: não se pretende aqui fazer a defesa da Câmara de Mirandela. Apenas chamar a atenção para a ligeireza de certos juízos com que se condenou a autarquia. Juízos que são formulados sem se conhecerem todos os contornos do caso, a começar pelo tipo de vínculo que a professora tem com a autarquia, e a continuar nas funções e nas específicas actividades docentes (ou outras) a que se obrigou, na relação que tem (tinha) com os alunos, nas suas qualidades pedagógicas e no impacto, real ou potencial, da sua conduta junto dos mesmos alunos, pais ou encarregados de educação e colegas de trabalho. Tudo isso deve ser ponderado, para avaliar se a conduta em causa inviabilizou ou não o cumprimento, pelo menos com condições mínimas de eficácia, do seu contrato de trabalho. Pode até acabar por reconhecer-se que a posição mais dificilmente sustentável é a da autarquia. Mas, por favor, não por razões de absoluta e intransigente defesa do valor sagrado da privacidade num caso em que a própria trabalhadora deu à privacidade um valor muito relativo. Tanto politicamente correcto também não.

Advogado

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