O Estatuto do Artista
O tão ansiado regime dos contratos de trabalho dos profissionais de espectáculos (ou, como alguns se habituaram a chamar-lhe com laivos de messianismo, o "Estatuto do Artista") é, hoje, uma realidade, por via da Lei n.º 4/2008, de 7 de Fevereiro. Cabe à Dr.ª Isabel Pires de Lima o mérito de ter conseguido o que praticamente todos os responsáveis pela pasta da Cultura dos últimos vinte anos anunciaram sem concretizar. Porém, muitas questões ficam ainda por resolver com a sua entrada em vigor.
Desde logo, salta à vista aquela que muitos apontam como a principal fraqueza do diploma, a de o Governo não ter avançado já com um regime específico de Segurança Social para os trabalhadores de espectáculos. Sem uma visão integrada e articulada dos dois sistemas, o laboral e o de Segurança Social, a nova lei saberá sempre a muito pouco.
Do lado do empregador, bastará o conhecimento mínimo da realidade da grande maioria das companhias de teatro e dança do nosso país para se lhes vaticinar um futuro sombrio caso as mesmas sejam forçadas a levar à letra a nova lei. Na verdade, a aprovação de um regime específico para o sector não deixa grande margem para que se continue a aguardar indefinidamente a transformação dos falsos "recibos verdes" que aí abundam em contratos de trabalho. Contudo, a consequência que daí resultará – quanto aos encargos para a Segurança Social que as companhias serão obrigadas a suportar – revelar-se-á ruinosa para elas. Só assim não será se o Governo se decidir a aplicar uma receita próxima da constante da sua recente proposta de Reforma das Relações Laborais, associando à conversão contratual uma série de incentivos, como a redução ou isenção parcial de contribuições para a segurança social.
Do lado do profissional de espectáculos, também parece razoável que a ausência ou redução de retribuição nas situações de inactividade seja compensada pela atribuição de um subsídio da segurança social com períodos de garantia diferentes dos da lei geral.
Por outro lado, os contratos a prazo poderão ter a duração que as partes estipularem até um limite máximo de oito anos. E ser renovados, dentro desse limite, quantas vezes as partes entenderem. E, porque se presume a natureza temporária dos espectáculos, não se exige sequer um motivo justificativo para o prazo acordado. A medida é, em si, altamente positiva, pois permite adaptar a duração do contrato à transitoriedade e aleatoriedade típicas do mundo dos espectáculos. Mas cedo se antevêem problemas se pensarmos em estruturas como orquestras ou elencos residentes de companhias de teatro ou dança. Com o novo regime, apenas como está, sem o tal incentivo à contratação em regime de trabalho subordinado, dois cenários alternativos se colocarão ao empregador: manter os "recibos verdes", ainda que contra a lei, alegando não ter condições para suportar as contribuições devidas para a Segurança Social; ou tirar partido das novas possibilidades abertas pela lei, pressionando os artistas no sentido de converter as respectivas relações profissionais permanentes em contratos a prazo ou em contratos de prestação de trabalho intermitente. Ou seja, ao invés de apaziguar os ânimos nas relações laborais entre produtores e artistas, a nova lei pode introduzir mais um elemento de tensão.
Outra interrogação ressalta do regime do trabalho intermitente, que obriga o empregador a "não admitir novos trabalhadores ou renovar contratos para actividades artísticas susceptíveis de poderem ser desempenhadas pelo trabalhador em situação de inactividade". São de imaginar, pois, as dificuldades que o empregador sentirá caso tenha actrizes inactivas na companhia e pretenda contratar uma Soraia Chaves para um papel de "femme fatale".
Estabelece também o diploma a possibilidade de reclassificação, velha reclamação do sector, sobretudo nas profissões de desgaste rápido como a dos bailarinos. Questiona-se, no entanto, a sua exequibilidade, designadamente no que toca à exigência de manutenção da retribuição.
Uma última nota para o polémico art. 18.º, relativo aos direitos de propriedade intelectual dos profissionais de espectáculos: ao permitir a transferência da respectiva gestão para a sua esfera individual, deslocando-a da competência das entidades de gestão colectiva, será difícil evitar que os artistas fiquem à mercê dos empregadores no que toca à negociação desses seus direitos.
Mais lidas