Caim e Abel vão à ONU
Uma catadupa de desaires angustia os líderes israelitas que viram ruir este ano parte da sua rede de segurança diplomática e militar
Uma catadupa de desaires angustia os líderes israelitas que viram ruir este ano parte da sua rede de segurança diplomática e militar e temem as repercussões da tentativa da Autoridade Palestiniana de obter o reconhecimento como membro de pleno direito da ONU.
O presidente Mahmoud Abbas, com apoio tácito do "Hamas", ainda negoceia os termos do pedido palestiniano, tentando designadamente conseguir o apoio da União Europeia, mas as linhas gerais do que irá ocorrer em Nova Iorque a partir da próxima semana são claras.
Veto e votosNo caso altamente provável de Abbas requerer ao secretário-geral da ONU a adesão da Palestina mesmo que a Autoridade Palestiniana consiga o obrigatório voto favorável de 9 dos 15 membros do Conselho de Segurança, o veto dos Estados Unidos impedirá que o processo passe à segunda fase.
A Assembleia Geral não chegará a votar a adesão da Palestina ainda que Abbas pudesse vir a contar muito provavelmente com a necessária maioria de dois terços entre os 193 países.
A declaração unilateral de independência proclamada por Yasser Arafat em 1998 foi reconhecida por 122 estados (incluindo 9 dos 27 membros da União Europeia) e a Autoridade Palestiniana pode conseguir em princípio mais sete votos para chegar à maioria de dois terços.
Noutra opção, menos provável, implicando uma declaração formal sobre reconhecimento das fronteiras anteriores à guerra de 1967 com eventuais ajustes territoriais por consenso e renúncia temporária a queixas junto do Tribunal Penal Internacional, Abbas poderá tentar que a Assembleia Geral eleve a "missão de observador permanente da Palestina" a "estado observador não-membro" (estatuto reconhecido ao Vaticano).
O estatuto de "observador permanente" continuará desta forma a limitar a actuação da "Organização de Libertação da Palestina", reconhecida como observador em 1974, e da Autoridade Palestiniana, instituída em 1994, mas a passagem de "entidade" a "estado" teria peso político, com consequências jurídicas incertas, já que a ocupação israelita de territórios palestinianos passaria a ser vista em termos de confronto entre dois estados.
As represáliasAo veto de Washington deverá seguir-se a retirada do apoio financeiro anual norte-americano de 500 milhões de dólares à Autoridade Palestiniana e o congelamento de diversas formas de cooperação (excepto provavelmente nas áreas sombrias da "segurança e informação") por imposição de congressistas republicanos e democratas altamente motivados na conquista do voto judaico nas eleições de 2012.
Falhadas todas as tentativas de mediação da Casa Branca e por maiores que sejam as repreensões públicas da administração democrática a Benjamin Netanyahu restará um facto de difícil gestão política externa para Obama: os Estados Unidos alinharam uma vez mais em favor de Israel descartando as ambições palestinianas e ignorando apelos de aliados árabes e da maior parte dos estados.
A coligação chefiada por Netanyahu, que abarca tendências que vão da extrema-direita aos trabalhistas, continuará, sem surpresa, a bloquear qualquer negociação que implique o desmantelamento de colonatos na Cisjordânia ou cedências sobre o estatuto de Jerusalém, mas terá de se esforçar por aumentar as clivagens entre as diversas componentes palestinianas.
Aguardando ou incentivando na sombra um aumento da violência através de manifestações e actos terroristas nos próximos meses, Israel beneficiará de confrontos com o "Hamas" e a "Jihad Islâmica" de forma a acentuar o isolamento do milhão de palestinianos acantonados em Gaza.
Na Cisjordânia são de esperar, por sua vez, maiores dificuldades para mais de dois milhões e meio de palestinianos sob tutela da "Fatah" de Abbas ainda que Israel não deva pôr em causa as instituições da Autoridade Palestiniana sob risco de arruinar a recuperação económica e criar uma instabilidade indesejável que só favoreceria tendências radicais islamitas.
A violência e o pretextoAtentados, confrontos, retaliações acabarão por limitar ganhos diplomáticos de Abbas que nada tem a esperar de promessas de negociações com Israel que serão lapidarmente sabotadas pelas veleidades terroristas de facções radicais islamitas e rivais da actual liderança da "Fatah".
O acentuar das divergências entre as duas metades rivais do "estado palestiniano", Gaza e Cisjordânia, é objectivo praticamente consensual entre militares e políticos israelitas que aspiram, ainda, a relegar para o limbo do inegociável o "direito de retorno" de mais de quatro milhões de refugiados em estados vizinhos.
Para boa parte dos cerca de 300 mil palestinianos de Jerusalém aumentará o risco de revogação do estatuto de "residente permanente", sendo uma incógnita a reacção da minoria árabe de Israel (cerca de milhão e meio de cidadãos, representando 20% da população).
A política irredentista induzirá judeus e árabes a reencenarem um mítico fratricídio noutra campanha de propaganda e violência étnico-religiosa, mas na presente conjuntura há uma novidade de maior.
Águas turvasO trunfo palestiniano jogado tradicionalmente por estados árabes, por Teerão ou radicais salafistas, é actualmente recurso cínico de valor muito incerto.
Tal como por altura da revolução khomeinista no Irão em 1979, quando o estado judaico perdeu um aliado estratégico, algo de fundamental se alterou, do ponto de vista de Israel, na relação de forças no Médio Oriente.
O entendimento com a Turquia está irremediavelmente comprometido e a tirada pública do ministro dos negócios estrangeiros israelita Avigdor Liberman de apoiar separatistas curdos veio turvar ainda mais águas já bem traiçoeiras em represália contra Ancara que - numa ameaça indirecta a Chipre, por sinal - admitira aumentar a sua presença naval no Mediterrâneo Oriental.
A gélida paz com o Cairo, firmada em 1978, dificilmente resistirá às exaltações, manobras e convulsões que se sucedem desde a queda de Hosni Mubarak e o que vier a acontecer no Egipto será determinante para a manutenção do tratado de paz que Israel assinou com a Jordânia em 1994.
Em ambos os casos para Israel é a segurança das fronteiras que está em causa e igualmente grave é a crise síria que só será resolvida com uma nova repartição de poderes que dilua ou anule a preponderância da minoria alauíta em Damasco acarretando, uma vez mais, instabilidade perigosa para o estado judaico.
A fuga para a guerraPor exclusão de partes e na ausência de alternativas, a coligação governamental israelita só encontra uma convergência de interesses viável no Médio Oriente e os parceiros são as monarquias petrolíferas do Golfo temerosas da hegemonia iraniana. O ano eleitoral norte-americano de 2012, com prometidas retiradas do Iraque e Afeganistão, é propício ao agitar da real ameaça nuclear militar do Irão.
Abbas subsiste como presidente de legitimidade contestada, frágil poder, e Netanyahu é sabido congregador de intransigentes, firmes em colonatos e privilégios, assoberbados por temores.
A tentação de mandar pelos ares um tabuleiro de xadrez quando o cerco aperta é de considerar.
O Irão é uma tentação de guerra que se insinua em Israel numa fuga para a frente e não faltam demagogos em Teerão para darem substância às piores das ameaças.
barradas.joaocarlos@gmail.com Jornalista Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira
Jornalista
Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira
Mais lidas